A direita é sempre a grande vilã: uma resenha do livro “Lei da Bala, do Boi e da Bíblia”
Data: 23/02/2025 08:13:59
Fonte: gazetadopovo.com.br
Já existe uma produção acadêmico-literária destinada a, supostamente, entender e criticar os anos Bolsonaro. Não incluo aqui o gibi Como enfrentar o ódio, de Felipe Neto, que não faz ninguém entender nada e tampouco consegue criticar algo que o seja. Um dos livros mais recentes desta safra de obras críticas a Jair Bolsonaro e à direita é A Lei da Bala, do Boi e da Bíblia: cultura democrática em crise na disputa por direitos, (Tinta-da-China, 2024), de Adriane Sanctis de Brito, Luciana Silva Reis, Ana Silva Rosa e Mariana Celano de Souza Amaral – a quem passarei a chamar apenas de Autoras, todas pesquisadoras de um autoproclamado “Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo” (LAUT). Parênteses: por que a sigla do “Centro” é LAUT e não CALA?
A Lei da Bala, do Boi e da Bíblia é o segundo livro de uma coleção acadêmica do LAUT (se é para ser acadêmico então vamos de rectius: CALA) dedicado a examinar a qualidade do Estado de Direito e da democracia. O primeiro livro é O Caminho da Autocracia, também de Adriane Sanctis e outros autores. Agradeço às Autoras por usarem variação da palavra “democracia” no título da obra. A palavra entrega a que vêm os usuários do termo. Resenha minha anterior nesta Gazeta do Povo, que era sobre o livro 100 Vozes pela Democracia, teve a escrita facilitada ao perceber que “democracia” virou o grande apito que faz os cães salivarem, como na experiência de Pavlov.
Pelo que se percebe da coleção do LAUT-CALA, o único autoritarismo existente no mundo é o da direita. Se os autores dessa coleção um dia falarem das autocracias da esquerda que infestam o planeta há décadas, como Cuba e Venezuela, é algo a se constatar. E, se o LAUT-CALA um dia abordar o fato de a esquerda estar há décadas colocando seus integrantes em tribunais (vide a atuação do grupo Prerrogativas-Prerrô) e outros postos-chave, e dominar o país sem precisar de uma revolução, é outra incógnita. Por enquanto, eles dirigem suas baterias para Jair Bolsonaro e à direita brasileira.
A Tinta-da-China é aparentemente um selo da Associação Quatro Cinco Um, que com muita pompa e circunstância anunciou nas redes, no final do ano passado que não utiliza mais a plataforma digital X: “Em consonância com outros veículos de comunicação e empresas do mercado editorial, não estaremos mais presentes na rede social X. A mudança nos algoritmos e na política da plataforma tem estimulado a desinformação e a proliferação de discursos de ódio, indo em sentido contrário à atuação da Associação Quatro Cinco Um, que se pauta pela defesa das ciências, da literatura, da cultura do livro, dos direitos humanos e da liberdade de expressão”. Recado dado. Sei que Elon Musk, dono do X, deixou cair uma lágrima e comprou um picolé a menos no último passeio de domingo que fez. A Associação agora pode ficar com as redes da Meta, de Mark Zuckerberg, que acabou de anunciar que vai deixar de fazer parte do complexo industrial e militar da censura global. Ou podem se mudar para área remota e viver da terra, sem internet. Enfim, boa sorte.
O conservadorismo é pintado como se fosse algo ruim, como se qualquer tentativa de barrar alguma mudança fosse necessariamente nefasto e devesse ser sempre combatido. Já o “progressismo” (nome bonitinho que a esquerda usa para si própria) só quer avanços, só quer mudanças, só quer a “recivilização” do país (conforme entende o ministro Luís Roberto Barroso)
Voltemos, todavia, à nossa vaca fria – A Lei da Bala, do Boi e da Bíblia. No prefácio de Renata Uitz é possível perceber a que vem o livro. Ao falar que o mundo está num crescendo de autoritarismo com as eleições de Jair Bolsonaro, Donald Trump (presidente dos EUA, eleito em 2016 e 2024), Narendra Modi (primeiro-ministro da Índia – confesso que não sabia que esse era da “turma da direita autocrática”) e Viktor Órban (primeiro-ministro da Hungria), Uitz sai com essa (preparem-se para o impacto): “Quando Luiz Inácio Lula da Silva venceu a eleição presidencial […] de 2022, o Brasil se afastou dessa tendência e assegurou seu lugar no panteão das democracias constitucionais maduras”(grifo nosso).
Para Uitz, Lula desceu dos Céus para trazer o fogo da democracia para nós, selvagens primitivos nutridos a leite condensado. Ao menos ela admite que Lula é bem maduro no sentido de que o próprio Lula admitiu ser: maduro como o seu amigo Nicolás Maduro, o ditador da Venezuela. Democracia constitucional madura? Como se eleger três vezes o mesmo presidente fosse sinal de democracia forte. Até os EUA já aprovaram há muito tempo limitação para o número de vezes que a mesma pessoa pode ser eleita presidente. Não há nada parecido em nosso horizonte…
Uitz continua falando sobre a forma como se deu a eleição de Lula: “[…] também foi necessária uma agilidade judicial extraordinária (especialmente do Tribunal Supremo Eleitoral)” – rectius: a autora provavelmente falava do Tribunal Superior Eleitoral. É compreensível a confusão, inclusive de funções de Alexandre de Moraes, na época presidente do TSE e ministro do STF – “para impedir práticas iliberais e autocráticas antes, durante e bastante tempo depois das eleições presidenciais”. Até aí sem novidades. Um dos ministros do TSE, Benedito Gonçalves, sussurrou ao ouvido do ministro Alexandre de Moraes que “missão dada é missão cumprida”. E já vimos que quando o STF-TSE quer algo, passado, presente e futuro se misturam. Como no final de Revolução dos Bichos, de George Orwell, às vezes não sabemos o que é homem e o que é porco, tudo se mistura e se torna parte da “névoa da guerra”.
Em seguida, as próprias Autoras de A Lei da Bala, do Boi e da Bíblia assinam uma “introdução” à obra. O objetivo seria “lançar luz sobre a atuação de conservadores e reacionários nos espaços formais de poder, buscando destacar como esses grupos mobilizam as instituições políticas e jurídicas e empregam o vocabulário característico delas para tensionar seus significados”. Ora, mas não é isso que a esquerda faz quando tem um objetivo? Ela não mobiliza as instituições etc.? Ou para ela o significado das palavras não se altera? Quando a esquerda busca avançar na pauta do aborto, por exemplo, ela passa uma camada de açúcar no tema e o chama de “direitos reprodutivos” para torná-lo mais palatável e defensável. Porém, quem está abortando está tudo, menos se reproduzindo, ora!
Ainda no prefácio de A Lei da Bala, do Boi e da Bíblia, as Autoras tentam definir o que é conservadorismo e reacionarismo. Admito que desconhecia uma corrente atual abertamente reacionária, ou que exista em algum canto do mundo um “Partido Reacionário” que, para as Autoras, é quem busca restaurar ou recuperar um passado ou ideal perdido. Pela definição, Vladimir Putin, o presidente de todas as Rússias, é um reacionário, eis que ele já disse que “o fim da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) foi a maior catástrofe geopolítica do século XX” e pelo jeito ele quer restaurar a União…
Mas o mais grave são as Autoras tentando definir o que é conservadorismo: “O conservadorismo preocupa-se com a velocidade das transformações sociais e exige que as mudanças sejam realizadas nos limites da ordem existente, respeitando elementos que entende serem externos à disputa política, tais como tradição, história, família, religião, biologia e mercado. Busca, essencialmente, se opor a mudanças consideradas ameaçadoras, e adapta seus conceitos conforme a ameaça da vez”.
Não que o conceito esteja completamente errado. O problema é que o conservadorismo é pintado como se fosse algo ruim, como se qualquer tentativa de barrar alguma mudança fosse necessariamente nefasto e devesse ser sempre combatido. Já o “progressismo” (nome bonitinho que a esquerda usa para si própria) só quer avanços, só quer mudanças, só quer a “recivilização” do país (conforme entende o ministro Luís Roberto Barroso).
Ora, seria como se todos, o tempo todo, estivessem numa constante revolução, mudando de ideia a cada segundo. Neste critério, José Dirceu e Fernando Haddad são conservadores, eis que eles são, com todo o respeito ao grupo usado de exemplo, os Amish da política brasileira, com suas ideias congeladas nos anos 60 e 80, respectivamente.
Se o conservador não quer que nada mude (ou que tudo mude para permanecer exatamente como está, segundo a lição de Giuseppe Tomasi de Lampedusa, autor de Il Gattopardo), como é que cada conservador não usa na vida adulta suas roupas de infância (como faz o guitarrista Angus Young, da banda de rock AC/DC)? Afinal, nada muda o tempo todo no mundo, parafraseando Lulu Santos, e cada conservador acorda pela manhã disposto a manter tudo como está. Inclusive o “pobre de direita”, esse abnegado, acorda disposto a não melhorar de vida e permanecer para sempre na favela/comunidade em que nasceu.
O foco de A Lei da Bala, do Boi e da Bíblia é analisar a atuação das chamadas “frentes parlamentares da Bala (segurança pública), do Boi (agronegócio) e da Bíblia (religião)”, e como elas teriam sido cooptadas pelo “bolsonarismo” para seus fins, tornando-se, independentes dele e após sua presidência, forças independentes e aliadas que visam destruir a esquerda. Começa o livro em si com “A Lei da Bala”, que é a análise da bancada no Congresso Nacional que teria (suposto) apoio financeiro da indústria armamentista, de onde seriam oriundas as forças de segurança pública (policiais e bombeiros).
A esta altura já percebemos que as Autoras gostam de chavões. Vejamos o exemplo a seguir, que dispensa comentários: “Parte dos diagnósticos mostra o encarceramento em massa de pessoas negras e a militarização das cidades despontando em países do Norte global na mesma época em que o neoliberalismo ganhava força […]”. Silvio Almeida, ministro de Luiz Inácio Lula da Silva, pode ter caído em desgraça e saído do governo, mas suas ideias (tortas) permanecem entre nós.
Ainda neste capítulo inicial, A Lei da Bala, do Boi e da Bíblia começa a elencar supostos “eixos” de atuação das bancadas da Bala, do Boi e da Bíblia no Congresso Nacional, elencando leis ou ações judiciais de seus interesses, como armamentismo e expansão do poder das forças públicas. Nesta análise, as Autoras começam a se contradizer. Elas criticam a inclusão da Polícia Militar no Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA), o que lhes dá competência para realizar policiamento ambiental. Isso, por acaso, seria ruim para o meio ambiente? Não seria mais um grupo capacitado a defender a natureza? Em que isso seria ruim?
Outra crítica é o interesse da “bancada da Bala” na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, chamada de “ADPF das Favelas”, que ganhou liminar no STF, suspendendo operações das polícias nas favelas cariocas. Ora, até as pedras sabem que a ADPF foi equivocada, piorando a situação no Rio de Janeiro, que se transformou num grande valhacouto de delinquentes ligados a facções criminosas vindos de outros Estados.
As Autoras também lamentam em A Lei da Bala, do Boi e da Bíblia que esteja para se aprovar no Congresso Nacional a Lei Orgânica das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares. Ora, o país pode ter lei orgânica até para a Defensoria Pública da União mas não para policiais e bombeiros, carreiras com maior número de integrantes e até necessidade maior de segurança jurídica, cuja atuação tem até mais impacto na vida da população do que a defensoria?
Em vários trechos de A Lei da Bala, do Boi e da Bíblia as Autoras entram numa espécie de negacionismo acerca da grave crise de segurança vivida no Brasil, como neste aqui: “A ideia de que o país está imerso em uma crise de segurança pública perpassa a maioria dos casos analisados. Neles, encontramos a imagem de uma nação amedrontada por índices de criminalidade nas alturas, mobilizada pelo aumento da circulação de armas de fogo e munição no país e favorável à redução do controle externo da atuação das forças de segurança pública”.
As Autoras sabem que vivem num dos países mais perigosos do mundo, que concentra elevada porcentagem de todos os homicídios e estupros cometidos no planeta. Elas sabem, também, que não podem sair sozinhas à noite (ou até mesmo durante o dia) pelas ruas das grandes cidades brasileiras sob pena de virarem estatística. Mas tentam fazer seus leitores acreditarem que tudo isso é intriga da oposição, e que é exagero tudo o que a direita expressa com relação ao tema.
A parte seguinte de A Lei da Bala, do Boi e da Bíblia é “A Lei do Boi”, em que as Autoras apresentam o que seria a bancada ruralista ligada ao agronegócio brasileiro, que gravitaria em torno da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), registrada no Congresso em 2005. Bolsonaro teria sido entusiasta da pauta do “Boi”, desmontado o mecanismo de fiscalização ambiental, paralisado demarcações de terras indígenas e extinguido incentivos à reforma agrária. Ora, Bolsonaro deve ter sido o primeiro presidente mundial que se opôs à reforma agrária e, ao mesmo tempo, liderado a entrega de títulos da reforma agrária. Foi, também, o primeiro presidente que recebeu apoio real dos índios e que teve o que mostrar a eles.
Enfim, só quando cheguei ao meio de A Lei da Bala, do Boi e da Bíblia percebi que as Autoras possuem um pequeno cacoete autoritário, como a pequena mãozinha do Dr. Strangelove, de Stanley Kubrick, estendida involuntariamente. Para elas, a direita não faz parte da Constituição Federal e não deveria fazer parte do mundo real. Tudo o que é permitido à esquerda, como se organizar em grupos, debater, criticar, contestar leis e decisões judiciais, receber dinheiro e treinamento do senhor George Soros, é anátema à direita e algo que viola a própria democracia.
Ao se entregar a este “cacoete” que as cega, a doutora Sanctis e companhia cometem erros grosseiros e primários ao longo de A Lei da Bala, do Boi e da Bíblia. Vejam esta afirmação contida na página 90 do livro, quando elas comentam sobre o direito de propriedade, citando a afirmação de um sindicato rural: “O direito à propriedade é apresentado ainda como ‘direito fundamental constitucionalmente garantido ao lado do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança” (Sindicato Rural de Abelardo Luz, 2021)”.
Ora, não é preciso um sindicato rural para nos dizer o quanto a propriedade é direito fundamental. Isto consta no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), no próprio caput do art. 5° da nossa Constituição Federal: “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade […]”. Desconheço professor de Direito Constitucional que diga o contrário. Sanctis, aliás, é da mesma área acadêmica (Direito Internacional e Comparado) e tem diplomas da mesma escola que eu. Ela deveria saber disto.
Infelizmente, esta resenha foi realizada com base em versão impressa do livro, o que impossibilita conferir, como numa versão eletrônica, a quantidade de vezes que o termo “extrema direita” é usado pelas Autoras. Desconfio que sejam muitas vezes
Ainda nessa seção do livro “A Lei do Boi”, percebe-se que as Autoras sequer permitem qualquer debate sobre os exageros da demarcação de terras indígenas, proteção ambiental ou trabalho escravo, assuntos sujeitos a muito subjetivismo. Ora, mencionando uma afirmação de 2004, do então deputado federal Asdrubal Bentes (PMDB-PA), as Autoras chegam a interpretar, a contrario sensu, que deixar de registrar um trabalhador na carteira ou atrasar seus salários é praticamente escravizá-lo. Se isso fosse verdade estaríamos na maior senzala a céu aberto do planeta. Basta ver que todo um ramo da Justiça – a Justiça do Trabalho – diariamente julga questões de direitos não registrados em carteira ou calotes trabalhistas sem que os caloteiros sejam chamados de “sinhozinhos”. O sr. Caetano Veloso seria réu de uma ação trabalhista movida por uma ex-empregada doméstica. Seriam os deuses escravocratas?
E, sim, qualquer brasileiro tem o direito de se opor (ou não) à proposta de expropriação de terras nas quais haja trabalho escravo, eis que não é impossível imaginar que um caso mal instruído e mal julgado que verse sobre esse crime possa terminar com uma retirada indevida da propriedade de alguém, afetando até mesmo as gerações seguintes do réu e proprietário das terras, jogadas indevidamente na miséria apenas porque um “juiz para a democracia” calhou de ser o juiz do caso.
Afirmar, ainda, que a legislação brasileira sobre terras indígenas e ou outras questões é perfeita e acabada, e que não admite mais discussão, é ser quase reacionário ou conservador, segundo o sentido que as Autoras imprimem ao longo do livro. Elas querem essa legislação congelada no tempo e os “conservadores” querem discutir o tema? Fico confuso: quem é o reacionário mesmo? Quem está com a cabeça em 1499 (último ano pré-cabralino)?
A terceira parte de A Lei da Bala, do Boi e da Bíblia é sobre a chamada “Lei da Bíblia”. As Autoras começam apresentando o que seria a bancada evangélica, oficializada numa frente parlamentar a partir da 52ª Legislatura (2003-2006). No restante do livro, a caracterização da tal Bancada da Bíblia é feita por meio de reducionismo e simplificações, tratando católicos e evangélicos como um único grupo monolítico, retrógrado e reacionário, que apoiaria pautas da direita. Nada mais distante da verdade, mormente quando um grupo, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB – que sequer faz parte da hierarquia da Igreja Católica), é mais próximo da esquerda que o contrário.
Como nas outras partes de A Lei da Bala, do Boi e da Bíblia, há destaque para as pautas legislativas apoiadas pela “Bancada da Bíblia”, tais como combate à ideologia de gênero, aborto e incentivos fiscais para entidades religiosas. Mas o homeschooling – ensino em casa ou domiciliar – é alvo preferencial das Autoras. A insistência da esquerda em combater essa forma de educação já deveria ter feito acender um alerta na direita. Em que o homeschooling ameaça a esquerda? É menos doutrinação em sala de aula? Incute valores familiares no aluno? Seria a confirmação de que a direita cresce tendo filhos enquanto a esquerda cresce fazendo a cabeça dos filhos dos outros? Isso merece maior aprofundamento e debate.
Até mesmo direitos indiscutíveis de primeira geração, tais como liberdade religiosa (lembremos que os Estados Unidos foram fundados com base nessa ideia) são tratados como absurdos por Sanctis e companhia. No fundo, elas tratam princípios constitucionais básicos, como segurança jurídica e separação de poderes, como mera perfumaria e muleta retórica da direita supostamente atrasada.
Quando as Autoras adentram na seara do aborto elas, de fato, enfatizam se tratar de um meio “contraceptivo”. Ora, ocorrida a concepção, materializada numa gravidez, o aborto já não constitui um meio contraceptivo, eis que a concepção, por óbvio, já ocorreu. E o que entra no mundo do ser, como dizia Olavo de Carvalho, não pode deixar de pertencer ao ser. Você pode até realizar uma nova ação (aborto) mas sem desfazer o que ocorreu (concepção). De fato, alguns legisladores da direita até estariam pregando um retrocesso ao pretender proibir aborto em qualquer caso de violência sexual (este Autor discorda dessa posição deles), hipótese que a atual legislação permite. Mas a esquerda também sai da linha ao advogar pelo suposto direito de abortar até a véspera do parto, aos nove meses de gestação (forçoso dizer que nesse momento da gestação o parto é o procedimento médico menos invasivo para a própria gestante do que o procedimento de aborto…). Em suma, nesta seção do livro, as Autoras demonstram um desgosto (compreensível) pela mistura da política com religião. Mas é preciso fazer uma provocação para testar as suas convicções.
Certa vez, eu assisti um programa sobre a Indonésia e até me chocou ver que por lá existe uma polícia religiosa islâmica que se desloca de Kombi pelos locais públicos, “convidando” fiéis a irem para as rezas de sexta-feira. Pois bem. Qual a diferença entre isso que alguns indonésios fazem e a patrulha que o Ministério Público do Estado da Bahia (e outros) tem feito, por exemplo, em cima da arte da cantora Claudia Leitte, que teria trocado o trecho de uma de suas músicas, passando a ser acusada de discriminação e racismo contra religiões afro-brasileiras?
Como conclusão, as Autoras terminam por misturar “Bala”, “Boi” e “Bíblia” num suposto amálgama de retrocesso e reacionarismo. Ao reduzir a direita a essa caricatura, as Autoras incidem na simplificação que tanto criticam ao longo do livro. Elas tentam fazer essa redução de forma mais “elegante”, ao contrário do modo óbvio e pouco discreto que fazem, por exemplo, algumas apresentadoras da Globo News que só enxergam “extrema direita” na direita, e nunca nenhuma de suas muitas nuances.
Infelizmente, esta resenha foi realizada com base em versão impressa do livro, o que impossibilita conferir, como numa versão eletrônica, a quantidade de vezes que o termo “extrema direita” é usado pelas Autoras. Desconfio que sejam muitas vezes. Ademais, em várias ocasiões as Autoras deixam transparecer certos vícios linguísticos da esquerda, como o uso do termo “neoliberal”, expressão mofada e datada dos anos 90 (bons tempos em que o PT jamais tinha chegado ao governo federal – era teatro das tesouras, mas sem que a tesoura tivesse cortado ainda).
Interessante, também, foi ver tantos direitos clássicos, de corte liberal, como direito à vida, à liberdade, à propriedade e à liberdade de expressão serem criticados ao longo do trecho da “Lei da Bala” apenas por terem sido usados pela direita para defender as suas atitudes políticas. Em verdade, as Autoras apenas se colocam como linha auxiliar dos poderosos de plantão. Flávio Dino, então ministro da Justiça, na famosa reunião com diretores das principais redes sociais existentes no Brasil em 2023, disse com todas as letras que “o tempo […] da liberdade de expressão como um valor absoluto, que é uma fraude, que é uma falcatrua, esse tempo acabou no Brasil”.
Isso nós já tínhamos percebido, excelentíssimo ministro Flávio Dino, muito obrigado. O que é novidade é saber que isso não é apenas a opinião de um ministro da Justiça ou do STF e, sim, é a opinião da academia, como da doutora Sanctis de Brito e suas colegas, que já enxergam como algo menor até mesmo o direito à propriedade (que sequer seria direito fundamental…). Curioso as Autoras gastarem tanto tempo analisando as posturas de parlamentares da direita e seus projetos de lei. Elas fingem não saber que o eixo de poder no Brasil já se deslocou do centro da Praça dos Três Poderes (Congresso Nacional) para um dos lados. Se para o lado direito ou esquerdo da Praça (Palácio do Planalto ou edifício sede do STF) isso dependerá da imaginação do leitor e por qual lado da Praça ele entra… A lei, ora, a lei…
Luiz Augusto Módolo de Paula é advogado, bacharel, mestre e doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da USP, jornalista e membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo.Escritor, autor de “Genocídio e o Tribunal Penal Internacional para Ruanda” (Appris, 2014), “Resolução de Conflitos em Direito Internacional Público e a Questão Iugoslava” (Arraes, 2017), “A Saga de Theodore Roosevelt” (Editora Lisbon International Press, 2020), “O Jugo da Histeria no Brasil Ocupado” (2021) e de “Teddy Roosevelt para Crianças” (2022) – os dois últimos editados pela Arcádia Educação e Comércio Ltda e escritos em parceria com Lílian Cristina Schreiner-Módolo. Instagram: @luizaugustomodolo. X(Twitter): @LAModolo.