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Caso Virgínia Fonseca, bets e preço do like: quando a influência gera responsabilidade civil de consumo

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Data: 26/02/2025 08:02:03

Fonte: conjur.com.br

Garantias do Consumo


“(…) o seguidor pode ser considerado consumidor, pois é o destinatário final da publicidade veiculada pelos influenciadores digitais. Estes, por sua vez, com base na teoria do “fornecedor equiparado”, podem ser considerados fornecedores, no instante em que atuam como intermediários ou facilitadores na concretização da relação principal, posicionando-se, perante o consumidor, como se fossem o próprio fornecedor.” (Decisão do TJ-PR no caso da Virgínia Fonseca — veja aqui)


Com o crescimento explosivo das redes sociais, que reúnem bilhões de usuários globalmente, os influenciadores digitais têm se destacado na criação de vínculos estreitos e significativos com seus seguidores. Seja através de grandes celebridades ou dos micro e nano criadores de conteúdo, esses formadores de opinião transformaram suas recomendações em ferramentas de marketing poderosas e eficazes.


No Brasil, um dos países que mais consome redes sociais, essa tendência é ainda mais pronunciada. Com mais de 10,5 milhões de influenciadores ativos apenas no Instagram, o país lidera esse fenômeno, demonstrando como essas novas expressões da comunicação mercadológica se integraram à economia da atenção. Influenciadores combinam de forma autêntica experiências cotidianas com estratégias publicitárias, promovendo uma ampla variedade de bens de consumo de maneira interativa e natural.


Essa dinâmica, que une entretenimento, informação e marketing, evidencia o impacto profundo que os influenciadores exercem na formação e orientação das decisões de consumo, dando uma ênfase social ao e-commerce, o que é conhecido como social commerce (1). Além de comprovar a eficácia dessas práticas para as marcas, o fenômeno instiga importantes debates sobre a qualificação jurídica das relações estabelecidas entre influenciadores e seus públicos, bem como sobre os limites da responsabilidade que lhes pode ser atribuída na promoção de produtos e serviços.


Influência digital é atividade negocial de comunicação mercadológica


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Historicamente, as pessoas tendem a confiar mais em quem está próximo. Pense bem: você daria mais crédito à recomendação espontânea de um vizinho que experimentou um produto ou à abordagem de um profissional que bate à sua porta com o intuito exclusivo de vender? Para muitos, especialmente os mais tradicionais, a influência digital representa o novo “boca a boca” – uma evolução do clássico “quem indica” que hoje impulsiona o consumo online.


No contexto convencional, o vizinho que recomenda um produto a um amigo não pode ser responsabilizado por eventuais problemas decorrentes dessa indicação, conforme os parâmetros do Código de Defesa do Consumidor (poderá, entretanto, dependendo do caso, ser conforme o Código Civil ou outra legislação). Isso porque essa recomendação é feita de forma espontânea e desinteressada, sem qualquer expectativa de retorno financeiro direto ou indireto, tampouco existindo um fornecedor nessa relação, eliminando, assim, a relação como de consumo.


Mas o que muda no ambiente digital?


Na esfera digital, os influenciadores transcendem a função de simples recomendadores desinteressados. Eles atuam como verdadeiros protagonistas na dinâmica comercial, como se fossem “a porta de entrada” de diversos bens de consumo no mercado, monetizando sua credibilidade e estabelecendo-se como intermediários estratégicos entre marcas e consumidores. Com alcance e engajamento expressivos, suas avaliações e recomendações evoluem de meras opiniões pessoais para uma atividade profissionalizada e altamente lucrativa, capaz de impactar diretamente as decisões de compra de seu público (2).


Essa transformação configura uma nova modalidade de comunicação mercadológica, que vai além do mero endosso informal. Diferentemente da publicidade tradicional – caracterizada por mensagens explicitamente voltadas à persuasão e de fácil reconhecimento pelo público – a comunicação mercadológica contemporânea abrange um espectro mais amplo (e sutil) de práticas. O foco não está apenas na veiculação de uma mensagem direta em meio tradicional, mas na obtenção de um objetivo central: influenciar as escolhas do consumidor e fortalecer a imagem e identidade de um produto, serviço ou marca no mercado por meio da confiança depositada nos influenciadores que passam a representar essa marca/produto/serviço.


Além disso, essa evolução tem promovido uma revolução no setor publicitário, ao integrar de forma harmoniosa entretenimento, informação e consumo de uma maneira altamente capilarizada. Nesse novo cenário, as opiniões e recomendações dos influenciadores não apenas moldam comportamentos de compra, como, especialmente, redefinem a percepção do público sobre marcas e produtos (e outras questões além do mercado de consumo).


Essa atividade é abrangida pelo CDC — mesmo para as bets


O regime jurídico da publicidade, conforme estabelecido nos artigos 36 a 38 do CDC, disciplina a transparência, a veracidade e a lealdade das informações transmitidas ao público consumidor com intuito comercial. Embora a lei utilize o termo publicidade, a doutrina adota uma concepção mais ampla, compreendendo toda e qualquer informação ou comunicação difundida cujo objetivo direto ou indireto seja incentivar o consumidor à aquisição de um produto ou à utilização de um serviço, independentemente do meio ou suporte utilizado.


Essa abordagem expansiva fundamenta-se na ratio legis de proteção do sujeito vulnerável aos apelos da sociedade de consumo, buscando regular tanto as informações quanto os modos de sua transmissão aos consumidores. Dessa forma, sob uma interpretação sistemática e funcional do CDC, é possível englobar todas as formas de comunicação mercadológica no conceito de publicidade, uma vez que elas representam atos negociais praticados por profissionais conscientes de sua atuação no mercado, que agem de maneira intencional para alcançar um público consumidor em potencial.


Portanto, no que se refere à comunicação mercadológica enquanto atividade negocial exercida pelo influenciador, o regime jurídico da publicidade aplica-se integralmente, englobando todos os seus preceitos e restrições. Importante lembrar que, caso a comunicação não se caracterize como mercadológica, outros dispositivos legais poderão ser invocados para orientar as recomendações e declarações desses agentes (3).


Lembremos aqui do caso ilustrativo do Carlinhos Maia quanto à publicidade enganosa das bets. Com mais de trinta milhões de seguidores, é fato que ele tem significativa influência na formação de opiniões e comportamentos de seu público. Em suas redes, fez publiposts de plataforma de jogos de azar, mas sem alertar sobre os riscos inerentes, transmitindo implicitamente a ideia de que o ganho fácil é uma realidade acessível, de que é a regra e não a exceção. Tal conduta, desprovida da cautela e da responsabilidade esperadas de alguém com sua visibilidade, efetivamente avalizou o produto divulgado, induzindo seus seguidores a acreditar nessa oferta e na facilidade do ganho.



A situação se agrava quando se considera que o autor da contenda chegou à plataforma de jogos por meio da divulgação realizada pelo influenciador – assim como grande maioria das pessoas. Assim, é possível visualizar um nexo causal entre a mensagem enganosa disseminada pelo influenciador e os prejuízos sofridos pelo autor, especialmente por conta da omissão de informações essenciais, principalmente em se tratando de jogos de azar – cuja natureza intrinsecamente arriscada exige uma comunicação ainda mais cuidadosa e pautada na boa-fé.


Diante disso, tornou-se, para o juiz, inequívoco que a conduta do influenciador não foi apenas imprudente, mas diretamente prejudicial, devendo ser responsabilizado pelos danos causados ao autor (TJ-SE, Procedimento do Juizado Especial Cível nº 0000072-22.2024.8.25.0083).


Influenciadores como fornecedores equiparados


No contexto do Direito do Consumidor aplicado ao mercado digital, a principal dificuldade não reside na adaptação de novas situações a arranjos jurídicos tradicionais, mas na definição exata dos elementos que compõem a relação de consumo. O CDC não apresenta um conceito fixo para esse vínculo, optando por uma abordagem relacional na qual a existência de um consumidor está sempre ligada à presença de um fornecedor.


Essa abordagem relacional, ainda que ofereça flexibilidade para proteger o sujeito vulnerável, gera desafios quando as novas dinâmicas do mercado digital não se encaixam perfeitamente nas definições “clássicas”. Isso porque as fronteiras entre os papéis tradicionais tornaram-se mais difusas e porosas, dificultando a distinção entre atuação profissional e não profissional, bem como entre publicidade e mera recomendação.


O CDC define o consumidor como toda pessoa que adquire ou utiliza produtos ou serviços como destinatário final, estendendo essa proteção, por meio de equiparação, aos potenciais consumidores expostos à publicidade (artigos 2º e parágrafo único, 17, 29). Por sua vez, o fornecedor é compreendido de maneira ampla, englobando todos os agentes que, de forma habitual e mediante remuneração (direta ou indireta), oferecem produtos e serviços (artigo 3º).


Contudo, tais definições rígidas nem sempre conseguem refletir completamente a complexidade das relações de consumo contemporâneas, marcadas pela diversificação e descentralização dos agentes da cadeia de fornecimento devido à crescente necessidade de hiperespecialização dos processos produtivos.


Para superar essas limitações, Leonardo Bessa (4) desenvolveu a teoria do fornecedor equiparado, que amplia o conceito de fornecedor para incluir agentes que, mesmo não figurando como fornecedores diretos, por sua atividade, exercem influência significativa sobre a relação, no seu estabelecimento e manutenção. Essa perspectiva, respaldada tanto pela legislação (como no caso do Estatuto do Torcedor) quanto pela jurisprudência (com o reconhecimento do STJ), permite compreender que influenciadores digitais podem sim ser responsabilizados tanto quando promovem produtos ou serviços próprios quanto quando recomendam os de outros fornecedores, passando a compor essa rede de fornecimento.


Virgínia Fonseca fornecedora: confiança, boa-fé e responsabilidade


Todos estão comentando o caso da influenciadora Virgínia, condenada após uma consumidora adquirir um produto que trazia seu nome e não ser entregue, mesmo ela não sendo a produtora do bem.


O acórdão destaca que os influenciadores, ao atuarem perante seus seguidores, podem ser equiparados a fornecedores, integrando o processo comercial por meio do uso de sua imagem pessoal. Segundo essa interpretação, “a depender das peculiaridades do caso concreto, o influenciador pode acabar por assumir uma relação conexa à principal, dado seu papel fundamental na aproximação, na interação e na mediação entre as partes.”


Entretanto, é importante ressaltar que nem toda atuação de influenciador se insere no âmbito do mercado de consumo, que é o critério essencial para a aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC). No caso em análise, a conduta da influenciadora ultrapassou a mera divulgação, pois ela associou seu nome e imagem ao produto, endossando-o e, com isso, assumindo responsabilidade direta tanto pela qualidade quanto pela entrega do bem.


Ao colocar sua identidade em parceria com o produto, Virgínia criou uma conexão entre sua reputação e as características anunciadas, fazendo com que o consumidor passasse a ter a expectativa legítima de que os atributos divulgados seriam efetivamente cumpridos. Essa associação, de fato, não pode ser considerada somente um ato publicitário, pois esta atividade, além de gerar proveito à influenciadora, gera risco aos consumidores; ela configura, na prática, uma oferta vinculante que impõe à influenciadora obrigações típicas dos fornecedores.


Assim, sob o prisma do CDC, a influenciadora é corresponsabilizada pelos danos decorrentes da não entrega do produto, já que sua atuação ativa na promoção e endosso contribuiu para a formação da confiança do consumidor. Conforme decidido pelo TJ-PR, “a influenciadora não agiu exclusivamente como um veículo de comunicação, pois teve um papel ativo ao colocar seu nome em parceria com o produto, sendo, assim, corresponsável pelos danos ocasionados.”


Lembrando que isso nada impede de a influenciadora ir buscar o ressarcimento dos prejuízos que suportou com os demais responsáveis em ação regressiva — trata-se foi apenas o cumprimento da reparação integral do consumidor, direito que lhe é garantido por lei.


Concluindo


Em linhas gerais, podemos seguramente dizer que a relação entre seguidores e influenciadores digitais é pautada na confiança. Quando recomendarem produtos e serviços, os influenciadores induzem seus públicos a adotar comportamentos condizentes com o estilo de vida que promovem, incluindo consumir produtos que — pelo menos aparentemente — consomem.


Essa credibilidade atribuída aos influenciadores digitais transforma suas recomendações em verdadeiros selos de aprovação para os consumidores, gerando-lhes expectativa legítima. Quando um influenciador endossa um produto ou serviço, ele, além de compartilhar uma opinião, confere uma garantia implícita de qualidade, baseada na confiança que construiu junto ao seu público.


Vai-se, portanto, além do simples ato de sugerir: estabelece-se uma relação fiduciária, em que os seguidores interpretam o endosso/publicidade como uma validação pessoal e segura do que está sendo ofertado. Assim, a confiança depositada nos influenciadores digitais os transforma em verdadeiros garantidores dos serviços e produtos que promovem, configurando, em certos casos, a figura de fornecedor fiduciário (5), seja propriamente enquadrado ou por equiparação.


Mas nem tudo é simples, preto no branco. Há mais de 50 tons de cinza no jogo da responsabilização de personagens na internet. Fato é: não há consenso, nem na jurisprudência, nem na doutrina.


Por ora, podemos enfatizar que serão responsáveis pelas informações que fornecem. Pelo produto ou serviço deverão ser, especialmente quando houver algum tipo de parceria ou aposição do nome pessoal no bem de consumo; em outras hipóteses, quando houver vício ou defeito em produtos e serviços que divulgam, a eventual responsabilização do influenciador deverá ser analisada caso a caso, considerando a conexidade contratual e a extensão do dever de indenizar em atenção à vulnerabilidade do consumidor.





(1) RIEFA, Christine. Beyond e-commerce: Some thoughts on regulating the disruptive effect of social (media) commerce. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 127, p. 281-303, jan./fev. 2020.


(2) MIRAGEM, Bruno. Novo paradigma tecnológico, mercado de consumo digital e o direito do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 125, p. 17-62, set./out. 2019.


(3) ODY, Lisiane Feiten Wingert; D’AQUINO, Lúcia Souza. A responsabilidade dos influencers: uma análise a partir do Fyre Festival, a maior festa que jamais aconteceu. Civilistica.com, v. 10, n. 3, 2021.


(4) BESSA, Leonardo Roscoe. Fornecedor equiparado. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 61, p. 126-141, jan./mar. 2007.


(5) SCHWARTZ, Fábio. A economia compartilhada e a responsabilidade do fornecedor fiduciário. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 111, p. 221-246, maio/jun. 2017.