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| Resultado do Oscar 2025 indica a crescente importância de Cannes, Berlim e Veneza para Hollywood

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Data: 03/03/2025 09:19:59

Fonte: estadao.com.br

Conseguimos, enfim. O Oscar já estava entalado na garganta do cinema brasileiro há décadas. Se insistimos na qualidade excepcional de nossa produção, porque ela não havia sido consagrada, até agora, com o troféu de melhor filme internacional (chamado antigamente de melhor filme estrangeiro)? Certo, podemos argumentar que o Oscar não seria necessariamente a melhor medida de qualidade para uma produção, e que tampouco precisaríamos da validação internacional para reconhecer a força de nossa arte.

Walter Salles recebe o Oscar de Melhor Filme Internacional em 2025 Foto: Frederic J. Brown / AFP

Mas hoje, não. Hoje é dia de comemoração. Com a vitória de Ainda Estou Aqui na categoria de melhor filme internacional (superando concorrentes de peso, a exemplo da animação Flow e, sobretudo, do musical Emilia Pérez), conquistamos uma visibilidade e um reconhecimento únicos. O Oscar representa prestígio em terra estrangeira, quando nos encontramos frente a frente com iniciativas gigantescas, movidas por orçamentos infinitamente superiores ao nosso — Ainda Estou Aqui constituiu, com folga, o longa-metragem mais barato concorrendo à categoria de melhor filme em 2025, e também o mais rentável, ou seja, aquele que obteve maior lucro proporcionalmente ao dinheiro investido.

Ainda Estou Aqui reuniu características que possibilitaram o Oscar

Agora, a posteriori, cabe esmiuçar as circunstâncias que permitiram tal façanha. Afinal, não basta ter em mãos um filme excelente, como tivemos tanto neste ano quanto em edições anteriores. A história de Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Torres, reuniu diversas características que possibilitaram a estatueta dourada da indústria norte-americana — algo ainda mais prestigioso para um projeto inteiramente falado em português, com diretor e atores brasileiros, a partir de uma história nossa. Embora este retrato dialogue com todas as ditaduras e autoritarismos (dos militares nos anos 1964-1985 ao atual governo Trump), ele resgata muito bem o perigo que o Brasil atravessou, aludindo a certas forças que ainda o ameaçam atualmente.

O renome de Walter Salles certamente contribui à empreitada. Na premiação de 1999, outro drama do cineasta, Central do Brasil, alcançou duas indicações ao Oscar (melhor filme estrangeiro e melhor atriz, para Fernanda Montenegro), definindo o imaginário coletivo e internacional do cinema brasileiro (alguns anos antes que Cidade de Deus e Tropa de Elite trouxessem um aspecto mais, digamos, “eletrizante” à desigualdade social deste lado do globo). Os filmes de Walter Salles já venceram o Festival de Berlim (Central do Brasil) e levaram prêmios importantes em Cannes (Diários de Motocicleta) e Veneza (Abril Despedaçado).

A importância de Cannes, Veneza e Berlim para o Oscar

Isso nos leva a outro fator fundamental à vitória: a importância crescente dos três maiores festivais mundiais na premiação de Hollywood. Anora já havia vencido a Palma de Ouro em Cannes. A Substância e Emilia Pérez foram recompensados no evento francês. Já o próprio Ainda Estou Aqui levou o prêmio de roteiro em Veneza — mesmo evento que havia consagrado O Brutalista. Estas distinções se convertem num parâmetro de qualidade essencial para os norte-americanos. Como os filmes são exibidos primeiro na Europa, e muitos meses depois se candidatam ao Oscar, tornam-se termômetros da percepção de qualidade para cerca de dez mil votantes da Academia.

Em paralelo, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos, que organiza o Oscar, atravessa um processo crescente de internacionalização. Em 2020, entregou seu prêmio máximo ao sul-coreano Parasita. No ano passado, incluiu entre os candidatos a melhor filme uma obra francesa (Anatomia de uma Queda) e outra britânica (Zona de Interesse), na qual os Estados Unidos entravam como coprodutores minoritários. Este ano, Brasil e França disputaram a categoria principal. Os americanos Sing Sing, Setembro 5, Rivais e Queer foram preteridos pelos estrangeiros. Este movimento, justificado inclusive pela diversidade racial, de gênero e de nacionalidade dos novos votantes, facilitou a aceitação do drama brasileiro.

A campanha de ‘Ainda Estou Aqui’

No entanto, o principal fator para a consagração de Ainda Estou Aqui reside nas condições para realizar uma campanha adequada. Fernanda Torres, Walter Salles, Selton Mello e os produtores Maria Carlota Bruno e Rodrigo Teixeira participam ativamente da divulgação do filme há muitos meses nos Estados Unidos. A atriz, em particular, compareceu a incontáveis talk shows, debates, mesas redondas, entrevistas, sessões comentadas e ensaios fotográficos. Trabalhou muitíssimo nas redes sociais, na televisão, na rádio, na Internet. Seu esforço e talento ultrapassaram, em muito, a caracterização de Eunice Paiva.

Um esforço deste porte ocorreu devido à presença da Sony Pictures e ao suporte bastante estruturado da RT Features, capazes de fazer frente à campanha gigantesca da Netflix para Emilia Pérez. É comum que os departamentos culturais dos países invistam em tais campanhas — pode-se imaginar o valor de tantas viagens, hotéis, fotógrafos, assessores de imprensa. Afinal, a consagração de Ainda Estou Aqui não implica em ganhos apenas para os participantes do projeto, mas para o País como um todo. O retorno cultural é inestimável. Em 2025, ano do Brasil na França, nosso cinema terá lugar de destaque no Mercado do Filme do Festival de Cannes. Novos projetos, parcerias e distribuições internacionais estão por vir.

Sem tamanho aporte, sem a dedicação incansável de diretor, atores e produtores, e sem a estrutura financeira e de logística, nosso longa-metragem jamais teria vencido o prêmio mais cobiçado entre as premiações internacionais. Isso não faria da obra menor, em termos de qualidade. Mesmo assim, caso não fosse descoberta, não poderia ser votada — a Academia não pode recompensar uma obra cuja existência desconheça. Pagamos o preço de ser vistos, sabendo que, com o excelente drama que tínhamos em mão, as chances de vitória eram reais.

Estávamos certos.

Nem todas as apostas rendem frutos, é claro. As três indicações inéditas no Oscar se converteram em uma estatueta. A sonhada recompensa de Fernanda Torres como melhor atriz parou na vitória de Mikey Madison, por Anora. Nem mesmo Demi Moore, atriz norte-americana querida e famosa, que trabalhava arduamente na campanha de A Substância desde maio de 2024, faturou o prêmio. Outros nomes de peso da indústria, a exemplo de Angelina Jolie (por Maria Callas) e Nicole Kidman (por Babygirl) ficaram pelo caminho. Nem mesmo conseguiram a nomeação.

Nossa vitória foi igualmente possibilitada, convém admitir, pelos sucessivos deslizes de Emilia Pérez. Considerado favorito absoluto há oito meses, ele sofreu com falas nada diplomáticas do diretor Jacques Audiard e, depois, com a descoberta de uma série de publicações ofensivas da atriz Karla Sofía Gascón nas redes sociais. Ela tentou consertar a situação sozinha, organizando uma entrevista sem o aval dos estrategistas da campanha.

Aprofundou o buraco, tornando-se persona non grata da indústria. A Netflix a retirou dos cartazes e limitou o incentivo financeiro às premiações. Na cerimônia do Oscar, as câmeras ocultaram ao máximo o rosto da atriz, privilegiando trechos do filme em que ela não figurava.

Novos olhares ao musical de máfia apontaram uma visão xenofóbica, colonialista e transfóbica por parte dos criadores. Aos olhos internacionais, o favorito, com 13 indicações, estragou-se.

Esta somatória particular de condições favoráveis a Ainda Estou Aqui, e desfavoráveis aos seus principais adversários, permitiu que o Brasil enfim se unisse a Argentina, Chile, México e África do Sul, para citar outros países que já haviam conquistado a sua estatueta de filme internacional. Sobretudo, o prêmio ajudará o brasileiro a olhar com mais carinho e atenção à própria cinematografia. Quem sabe, servirá a ilustrar, aos ministérios e secretarias, a importância de investimento em toda a cadeia do cinema: da criação à produção, além de distribuição e exibição.

Assim como as principais indústrias fazem com suas cinematografias nacionais (o que inclui os bem-sucedidos Estados Unidos, França, Alemanha e Coreia do Sul), o dinheiro e esforço colocados no audiovisual correspondem a um investimento que surte efeitos bastante benéficos a curto e longo prazo. Os americanos estão se apaixonando ainda mais por Walter Salles, e descobrindo o trabalho da grande Fernanda Torres. Nós já os conhecíamos há décadas. O Oscar se converte em espelho da produção cultural, virado desta vez para nós mesmos. Que a alegria carnavalesca e a empolgação desta Copa do cinema nos ajudem a olhar com igual atenção para os Ainda Estou Aqui que chegarão muito em breve.