Mais mulheres nos discursos, mais votos nas urnas e pouco poder na pol’
Data: 04/03/2025 17:58:51
Fonte: em.com.br
TÍTULO: MAIS MULHERES NOS DISCURSOS, MAIS VOTOS NAS URNAS E POUCO PODER NA POLÍTICA
LINHA FINA: Enquanto mulheres perdem espaço na equipe de Lula, aumento da quantidade de deputadas não garante voz e acesso aos espaços de poder no Congresso Nacional
TEXTO:
Entre o discurso em defesa de mais mulheres na política feito no dia 8 de março de 2023 (Dia Internacional das Mulheres no início do seu terceiro mandato) e hoje, o presidente Lula demitiu três mulheres da Esplanada dos Ministérios (Nísia Trindade, Saúde, Daniela Carneiro, Turismo, e Ana Moser, Esporte) e a presidente da Caixa Econômica (Rita Serrano). Apenas duas vagas abertas no primeiro escalão do governo federal foram repostas com a nomeação de mulheres: as ministras Macaé Evaristo (Direitos Humanos) e, na última semana, Gleisi Hofmann (Relações Institucionais). Até quem é responsável pelas políticas para mulheres está com a cabeça a prêmio na reforma ministerial em andamento: a ministra Cida Gonçalves (Mulheres).
No STF (Supremo Tribunal Federal), o presidente nomeou um homem (Flávio Dino) para a vaga da ministra Rosa Weber e outro homem (Cristiano Zanin) para o lugar de Ricardo Lewandowski. No TSE, Lula indicou dois homens para vagas titulares e duas mulheres negras (Vera Lúcia Santana e Edilene Lobo) ficaram como ministras substitutas. Agora, a expectativa é em relação a duas indicações para o STJ (Superior Tribunal de Justiça) com a aposentadoria das ministras Assusete Magalhães e Laurita Vaz, em 2024. O Planalto vem sinalizando que as vagas podem ser ocupadas por homens.
As trocas de mulheres por homens, no executivo e judiciário, são uma escolha política que reforçam a dificuldade de traduzir discursos em práticas efetivas em prol da igualdade de gênero no primeiro escalão do setor público. Realidade que também se confirma no legislativo onde mesmo contando com voto popular, as mulheres são excluídas dos círculos de poder.
Nos últimos 20 anos, mais do que dobrou a quantidade mulheres parlamentares somente na Câmara dos Deputados (instituição que representa o perfil e os interesses da sociedade brasileira), no entanto, elas continuam sem espaço em posições estratégicas e, com isso, sem voz, influência e protagonismo em questões relevantes para o país.
Um mergulho nos números das 5 últimas legislaturas (20 anos de mandato) traduz bem a falta de poder das mulheres na Câmara dos deputados. Foi o que fez a pesquisadora e consultora Ana Paula Abritta que trabalha, há quase dez anos, com relações governamentais. Ela ficou incomodada com a ausência da influência feminina em espaços onde, de fato, o poder habita dentro do Congresso. É o caso de cargos que influenciam a pauta de votação e agendas políticas, itens fundamentais na hora da negociação com o governo. Entre eles estão: a mesa diretora, líderes de partidos ou de bancadas e presidência de comissões permanentes de alta relevância.
“A quantidade de deputadas aumentou de forma significativa (43 eleitas em 2002 para 91 na atual legislatura), porém, elas não ocupam posições de poder que garantam acesso às negociações da coalizão política”, destaca a pesquisadora. “Nunca houve uma presidente da Mesa Diretora e a primeira vez que uma mulher presidiu a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) foi na última legislatura (que terminou no início de 2023)”, complementa. Segundo ela, no período analisado, foram registradas apenas 21 mulheres presidentes de comissões permanentes, num universo que quase 150 oportunidades.
O que isso representa na prática? A “tensão” entre o Executivo (que quer aprovar as propostas de seu interesse e garantir a governabilidade) e o legislativo (Câmara e Senado, responsáveis pela discussão, aprovação e fiscalização de políticas e leis) leva a barganhas e acordos aos quais só tem acesso quem pode influenciar de alguma forma o fluxo desses processos. Os cargos da Mesa Diretora, líderes partidários e presidência de comissões asseguram um poder aos seus detentores e, por isso, são tão disputados.
O estudo “Representatividade das mulheres na política” mostra que as mulheres até passam no primeiro filtro: as urnas eleitorais, mas ficam relegadas a posições “de baixo prestígio” quando inserida no tabuleiro político, dominado pelos homens. Uma clara sinalização de que o equilíbrio de gênero ainda está distante. Ao iniciar um novo ano legislativo, a Câmara tem a chance de reverter, pelo menos parcialmente, esse quadro ao indicar as lideranças em postos importantes como as comissões temáticas da casa.
No Senado, pela primeira vez, uma mulher, a senadora Daniella Ribeirto (PSD-PB) foi eleita para primeira secretaria, um dos cargos mais importantes e que funciona como uma espécie de prefeitura da casa, responsável por supervisionar as atividades administrativas, contratos e gastos. Além disso, as senadoras Ana Paula Lobato (PDT-MA) e Soraya Thronicke (Podemos-MS) foram eleitas para terceira secretaria e para quarta suplência, respectivamente.
Onde estão as mulheres eleitas na Câmara?
As mulheres já são mais da metade da população brasileira (51,5%), segundo IBGE, e também do eleitorado (52,47%), de acordo com os dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Além disso, elas são quase metade dos filiados a partidos políticos (46%). Mesmo assim, “na 56ª legislatura (2019-2023), só uma mulher, num total de 24 líderes fazia parte do colégio de líderes, um instituto com uma série de prerrogativas regimentais que conferem poder, além de ser o espaço onde são predefinidas as pautas e encaminhamentos de votação na Câmara”, destaca Ana Paula Abritta.
E onde estão as mulheres eleitas para a Câmara dos Deputados, então? Em posições de menor prestígio no jogo político. Para conseguir entender melhor a distribuição nesse tabuleiro, vale destacar uma classificação oriunda da ciência política norte-americana que divide os principais temas políticos em três categorias: hard politics, soft politics e middle politics.
O primeiro (hard politics) resume as áreas relacionadas à capacidade de o presidente eleito governar e executar suas promessas de campanha porque mexem diretamente com a gestão da economia e o poder do Estado. E aí estão, por exemplo, temas como reformas política e eleitoral, segurança pública, infraestrutura, políticas econômica, tributária, industrial, agrícola e de reforma agrária. São os “top ten” da política.
Já as Soft Politics concentram os assuntos mais voltados para o social (como habitação, saneamento básico, educação, cultura, família, direitos do consumidor). Enquanto isso, as Middle Politics incluem temáticas de abordagem dupla como a Previdência Social, que pode ser analisada pelo lado dos beneficiários do sistema (os aposentados e pensionistas) e pelo lado das contas públicas.
“As mulheres são maioria nas comissões de Soft Politics que são menos valorizadas no processo político”, conclui Abritta. “Com isso, elas se mantêm em agendas políticas de menor visibilidade”. O levantamento destaca que, em 20 anos, foram relatados 12.569 projetos por mulheres, em comissões permanentes. Desse total, 62% foram em Soft e Middle Politics.
Frente de disputa da direita e da esquerda
“As mulheres são relegadas a comissões afeitas a cuidados”, avalia Cristiane Bernardes, técnica do Observatório Nacional da Mulher na Política (ONMP) da Câmara dos Deputados e pesquisadora sobre o tema. Para ela, isso reflete um comportamento histórico sobre o papel da mulher na sociedade que, mais recentemente, tornou-se uma frente de disputa entre partidos políticos considerados de direita e de esquerda.
“As mulheres sempre concentraram as atividades de cuidados não remuneradas. Assim, há uma sobrecarga que provoca a exclusão política de muitas delas”, diz Cristiane. Ela lançou, em 2023, o documentário “A Câmara” dirigido em parceira com o antropólogo, diretor e roteirista Tiago Aragão.
O filme de quase 90 minutos mostra as deputadas em debates, embates e articulações nas comissões, no plenário, corredores e gabinetes da Câmara. Na pauta, temas como direitos reprodutivo, educação pública, política do cuidado, estado laico, racismo e polarização política.
“É muito comum que não sejamos convidadas e não nos vejam como pessoas aptas a discutir as chamadas hard politics”, diz a deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP), um dos nomes mais fortes na luta pelo direito feminino da Câmara atualmente. “Acho que não há classificação ou conciliação com relação a isso. Somos nós que devemos nos impor, nos enfiar onde não somos chamadas e fortalecer umas as outras para ir galgando esses espaços de poder”.
Old boys’ club
O caminho é longo e começa nas coisas mais básicas. Sâmia, por exemplo, precisou pedir para a mesa diretora da Câmara registrar nos painéis eletrônicos quando uma deputada está de licença maternidade. Parece algo pequeno? Mas o nome dela e de outras parlamentares que tiveram filhos durante o exercício do mandato chegaram a constar de listas dos parlamentares que mais faltaram, quando estavam de licença. Elas ainda sofreram críticas nas redes como se tivessem se omitido em discussões no Congresso.
“Há uma questão patriarcal que ainda prevalece e a cria uma afinidade temática”, analisa Abritta, destacando a falta de incentivo partidário para as mulheres como um entrave para avanços mais fortes. E, por isso, ela defende a fixação de cotas para cargos de poder dentro da Câmara. Só assim, acredita, poderia ser acelerada a desconstrução dos chamados Old boys’ club, espaços masculinos informais e descontraídos de debates, construção de relacionamentos e compartilhamento de informações, como um clubinho fechado bem à moda antiga, onde mulheres não fazem parte e que funcionam como uma barreira de aumento da representatividade delas nos cargos de maior influência.
Ofensas e xingamentos
“A estrutura da violência da política de gênero é muito perversa. Ela já efetivamente expulsou, tirou mulheres da política”, desabafa a deputada Sâmia, pontuando que isso ocorre por meio de: “ofensas, xingamento e ameaça que recebemos, presencial ou virtualmente, que visam impedir nossa atuação, repensar aquilo que dizemos e fazemos”.
Por isso, para ela, “com indicação de mais mulheres para os espaços de poder e, também, com as regras novas eleitorais”, será possível avançar mais rapidamente. Mas ela não acredita numa mudança interna por iniciativa própria. “O movimento ainda é democrático de fora para dentro. E, não, internamente, nos espaços de poder que resistem muito a presença de mulheres. Não à toa se vota constantemente projetos de anistia aos partidos que não cumprem com as regras já existentes”.
Sâmia afirma ainda que “um dos grandes desafios é enfrentar essa estrutura machista que está dentro dos partidos políticos que se organizam, muita das vezes para manutenção do poder de coronéis e de pessoas que se sentem donos do país através do cargo que ocupam”.