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É Tudo Verdade revela aos brasileiros o cinema humanista e poético de Humphrey Jennings

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Data: 11/04/2025 09:08:04

Fonte: revistadecinema.com.br


Por Maria do Rosário Caetano

O É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, que conclui sua trigésima edição nesse domingo, 13 de abril, revelou à nova geração de cinéfilos brasileiros nome de primeira grandeza do cinema não-ficcional, o britânico Humphrey Jennings (1907-1950). Por nunca ter realizado um longa-metragem fora do esforço de guerra comandado por Churchill, Roosevelt e Stálin, o londrino acabou fora de muitos dicionários e antologias fílmicas.

Bem que houve, no Brasil, intento de revelação e difusão de parte de sua produção, composta de apenas 19 curtas e médias-metragens. E um quase-longa, o arrebatador “Começaram Incêndios” (63 minutos, 1943), sobre bombeiros londrinos empenhados no combate ao fogo gerado por incendiárias bombas nazistas.

Esse intento se deu em 1958, quando o Governo Britânico doou filmes do GPO (General Post Officer), organização comandada pelo mestre John Grierson, à Cinemateca Brasileira. Na ocasião, Paulo Emilio Salles Gomes escreveu, no Estadão (19 de abril de 1958), o ensaio “A Lição Inglesa”. Explicou, em parágrafos substantivos, a importância dos filmes que revelariam aos brasileiros o que os britânicos haviam feito, no audiovisual, sob permanente ataque dos nazistas.

Nunca é demais lembrar que a Inglaterra de Churchill foi a primeira nação a enfrentar o poder bélico de Hitler. Só depois contaria com a ajuda dos soviéticos (um dos filmes da Retrospectiva Humphrey Jennings até faz menção positiva ao Exército Vermelho, de origem bolchevique). E, em seguida, com a valiosa ajuda dos EUA de Roosevelt. A Segunda Guerra Mundial terminou há exatos 80 anos.

Apesar do brilhante e revelador artigo de Paulo Emilio, o cinema do poeta, pintor surrealista e cineasta Humphrey Jennings não penetrou no organismo cinematográfico de estudantes e espectadores brasileiros. Permaneceu, entre nós, um ilustre desconhecido.

No Estadão, o texto emiliano ensaiava explicação para tal desconhecimento: “a razão pela qual Jennings ainda não obteve fora de seu país o renome que merece reside, talvez, na profundidade de seu britanicismo”. E exemplificou: “suas melhores fitas, ‘Family Portrait’, ‘Diary for Thimothy’ e ‘Listen to Britain’, são um caleidoscópio de alusões íntimas aos costumes, à cultura e às manias da Inglaterra e o espectador estrangeiro não pode com uma só visão apreciar o sabor raro dessas obras”.

O articulista do Suplemento Literário do Estadão (texto integral no volume 1 de “Crítica de Cinema no SL”, Paz e Terra-Embrafilme, 1981) não escondeu o objetivo dos filmes do GPO – participar do esforço de guerra. Esta foi, também, a diretriz dos documentários assinados por Jennings.

Porém, Paulo Emilio fez questão de destacar que ninguém, como os britânicos, gerara filmes de propaganda com tamanho empenho artístico. Para assegurar, com sua convicção costumeira: “as necessidades de propaganda não corromperam o gênero”.

E mais: “todo o passado do documentário britânico o tinha tornado apto, pelo relato da fadiga e beleza da vida quotidiana, a contar o heroísmo do homem comum, na adversidade”.

O ensaísta brasileiro escreveu seu texto oito anos após a morte de Humphrey Jennings, ocorrida tragicamente na Grécia, em 1950. O britânico, então com 43 anos, encontrava-se na ilha de Poros, onde buscava locações para novo filme (sobre a saúde na Europa do Pós-Guerra). Ele caiu de um penhasco e, tragicamente, abreviou seus dias.

Cena de “Começaram Incêndios”, de 1943

Hoje, analistas vêem John Grierson (1898-1972) como documentarista dotado de obsessão didática e, em certa medida, inimigo do inquieto, inventivo e lírico Humphrey Jennings. Já Paulo Emilio, em seu texto, vê os dois com o olhar humanista de quem viveu a década seguinte à tragédia da Segunda Guerra Mundial, conflito que exterminou milhões de vidas, arruinou cidades e arremessou (de avião norte-americano) duas bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki.

Diz o autor de “Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento”: o escocês Grierson era um documentarista “impregnado de ideias socialistas, ‘meio presbiteriano e meio marxista’ (segundo Alberto Cavalcanti)”. Um realizador que considerava “o cinema como um púlpito”. E que foi capaz de mobilizar nomes fundamentais como Basil Wright, Paul Roth, Harry Watt, Arthur Elton”. Sem esquecer o jovem Humphrey Jennings.

“Como o norte-americano Flaherty, figura inspiradora dos documentaristas da escola inglesa (junto com a escola soviética)” — lembrará Paulo Emilio —, Grierson e seus discípulos, “preocupados em reformar a sociedade, procuraram, longe da técnica simplista e afirmativa da propaganda, dramatizar documentos da realidade de seu tempo a fim de provocar nos cidadãos a tomada de consciência dos problemas humanos modernos”. Tanto que, observadas fora do contexto da Segunda Guerra Mundial, “todas elas conservam a marca profunda da missão de Flaherty: revelar a poesia e a nobreza da humanidade comum e do trabalho”.

O mundo do trabalho ainda hoje constitui a essência do cinema de outro britânico, Ken Loach, em certa medida um discípulo do GPO. Registre-se o quanto foi marcante no cinema de Jennings o registro de atividades laborais de centenas de mineiros e obreiros. Depois da retrospectiva organizada pelo ÉTV, resta torcer para que o artista, tão tardiamente revelado aos brasileiros, consiga, nessa segunda tentativa, penetrar nas escolas de cinema de todo o país. E torçamos para que seus filmes cheguem ao streaming.

A Revista de CINEMA assistiu a cinco dos filmes de Humphrey Jennings e ao documentário de 52 minutos que Kevin Macdonald dedicou a ele, 25 anos atrás. Seguem-se breves comentários sobre eles:

. “Começaram Incêndios” (1943, 63’) — Vários integrantes do Corpo de Bombeiros de Londres se preparam, com vibrantes cantorias (acompanhadas por ágil pianista) para o combate de terríveis incêndios provocados, no escuro da noite, por ataques da aviação nazista. O filme concentra-se nas Docas, importantíssimas no suprimento de viveres para o país, atacado pelas aeronaves do Fuhrer. O fogo a tudo devora. Os bombeiros são vistos abastecendo suas mangueiras com água, venha ela de onde vier, salvando um colega ferido, pedindo reforços a prestativas mulheres, anotadoras de providências a serem tomadas a cada nova solicitação. O filme, com música mobilizadora, tem a força de um longa ficcional de ação hollywoodiano. Só que temperado com o lirismo humanista de Jennings.

. “Tempo Livre” (1939, 15’) — Um retrato da classe trabalhadora britânica, dedicada ao serviço duro nas minas de carvão, nas fábricas de aço e no beneficiamento do algodão. Como se divertem esses homens e mulheres? Quais são seus hobbies? Eles jogam cartas, se agrupam para cantar ou dançar. Uma curiosa banda marca presença. Vindo da elite artística e educacional londrina, Jennings incomodou a alguns intelectuais com esse filme. Estes perceberam certo deboche do poeta-pintor formado em Cambridge, ao registrar o lazer do povo. Mas essa postura seria superada, em profundidade, quando ele transformasse trabalhadores do País de Gales em protagonistas do incrível “A Vila Silenciosa”.

. “A Vila Silenciosa” (1943, 36’) – Jennings mobilizou trabalhadores da Vila de Cwmgiedd, no País de Gales, para reconstituir o que se passara em Lídice, na Tchecoslováquia. Os nazistas ocuparam a vila tcheca e implantaram o terror. A população resistiu em busca de sua libertação. Os homens (170 no total) foram fuzilados, mulheres e crianças enviadas a campos de concentração. Os galeses sentiram na pele, durante a realização do filme de Jennings, o que aconteceria se eles não resistissem à invasão nazista. Tudo é feito em dois idiomas (inglês e galês). Os ocupantes nazistas se expressam em inglês com carregado sotaque germânico. E tentam subjugar, cultural e militarmente, o pequeno vilarejo. Conseguirão, na prática, mas o exemplo de Lídice calará fundo na alma da Grã-Bretanha. Um dos mais belos filmes de Jennings.

. “Londres Resiste!” (1940, 9’), parceria com Harry Watt – Um aliciante retrato da capacidade de resistência da população civil aos ataques nazistas. Os populares serão vistos durante os bombardeios e depois deles. Recomeçando a vida cotidiana e sabendo que têm que resistir, pois novos ataques virão.

. “Palavras para Batalha” (1941, 8’) – Quase um kinoclip, sintético e poderoso, com imagens de William Blake, Kipling e Milton, esculpidos em pedra, textos de Abraham Lincoln e, em especial, do mobilizador e carismático Winston Churchill. As palavras do primeiro-ministro soarão igualmente poderosas na voz aliciante do ator Lawrence Olivier. Artistas e políticos serão vistos unidos, todos, como estímulo à coragem popular. É preciso mobilizar a população contra a ameaça (já realidade desde 1939) nazista. Jennings o faz com seu costumeiro lirismo.

. “Humphrey Jennings: O Homem que Ouvia a Grã-Bretanha”, de Kevin Macdonald (2000, 52’) – O festejado diretor de “Munique – Um Dia em Setembro”, “O Último Rei da Escócia” e “O Mauritano”, hoje com 57 anos, era um jovem quando realizou esse documentário sobre o trajetória do “poeta do cinema britânico”. Trechos dos filmes do cineasta, que sabia “Ouvir a Grã-Bretanha”, foram somados a sólidos depoimentos de Lord Richard Attenborough (“Ghandi”), Lindsay Anderson, Mike Leigh, antigos colaboradores de Jennings e por sua filha. Uma bela introdução ao universo do documentarista que aprendeu a amar o povo e a buscar a “britanicidade” dos trabalhadores da ilha que enfrentou Hitler.

Os outros filmes exibidos na retrospectiva do ÉTV:

. “Ouça Grã-Bretanha” (1941, 20’), parceria com Stewart Mcallister – Cenas e sons do cotidiano da Grã-Bretanha durante a Guerra, incluindo concerto de Bud Flanagan e Chedney Allan, na hora do almoço, em fábrica de munições, e Myra Hess, na National Gallery.

. “Um Diário para Thimothy” (1946, 39’) – Um diário dos primeiros seis meses de vida de Thimothy, nascido no dia 3 de setembro de 1944, em cenário de nações devastadas pela Guerra, soldados marchando entre escombros e civis buscando perspectivas para o futuro.

. “Retrato de Família” (1950, 26’) – Um registro das tradições e conquistas inglesas ao longo dos séculos. A agricultura, a ciência, a vida política e social reafirmam aos britânicos seu lugar dentro do próprio país e no concerto das Nações.