The Economist: Como seria uma crise do dólar?
Data: 19/04/2025 17:09:21
Fonte: estadao.com.br
O dólar deveria ser uma fonte de segurança. Mas, ultimamente, tem sido motivo de medo. Desde seu pico em meados de janeiro, o dólar americano caiu mais de 9% em relação a uma cesta de moedas importantes. Dois quintos dessa queda ocorreram desde 1º de abril, mesmo com o rendimento dos títulos de dez anos do Tesouro americano subindo 0,2 ponto porcentual. Essa combinação de rendimentos em alta e moeda em queda é um sinal de alerta: se os investidores estão fugindo mesmo com os retornos em alta, deve ser porque acham que os Estados Unidos ficaram mais arriscados. Há rumores de que grandes gestores de ativos estrangeiros estão se desfazendo de dólares.
Ao longo de décadas, os investidores contaram com a estabilidade dos ativos americanos, transformando-os em pilares das finanças globais. A profundidade de um mercado de US$ 27 trilhões ajuda a fazer com que os títulos do Tesouro americano sejam um refúgio; o dólar domina o comércio em tudo, desde bens e commodities até derivativos. O sistema é sustentado pelo Federal Reserve (Fed), que promete inflação baixa, e pela robusta governança dos Estados Unidos, sob a qual estrangeiros e seu dinheiro sempre se sentiram seguros e bem-vindos. Em poucas semanas, o presidente Donald Trump trocou essas premissas inabaláveis por dúvidas de revirar o estômago.
Esta crise foi criada pela Casa Branca. A imprudente guerra comercial de Trump elevou as tarifas em quase dez vezes e gerou incerteza econômica. Antes invejada pelo mundo, a economia americana agora está à beira da recessão, com as tarifas quebrando as cadeias de suprimentos, impulsionando a inflação e prejudicando os consumidores.
Isso ocorre no momento em que a posição fiscal historicamente ruim dos Estados Unidos está se agravando ainda mais. As dívidas líquidas estão em cerca de 100% do PIB; o déficit orçamentário do último ano (7%) foi surpreendentemente alto para uma economia saudável. Mesmo assim, em sua busca para renovar e estender os cortes de impostos do primeiro mandato de Trump, o Congresso quer tomar ainda mais empréstimos: em 10 de abril, aprovou um projeto orçamentário que pode adicionar US$ 5,8 trilhões em déficits na próxima década, de acordo com o “think tank” Committee for a Responsible Federal Budget. Isso aumentaria o déficit em mais 2 pontos porcentuais e excederia o valor total combinado dos cortes de impostos do primeiro mandato de Trump, os gastos extras da pandemia de covid-19 e os projetos de estímulo e infraestrutura de Joe Biden. E poderia dobrar o ritmo de aumento da relação dívida/PIB nos próximos anos.

Há rumores de que grandes gestores de ativos estrangeiros estão se desfazendo de dólares Foto: J. F. Diorio/Estadão
O que faz com que esta crise econômica e a perda de disciplina fiscal sejam tão explosivas é o fato de que os mercados estão começando a duvidar da capacidade de Trump de governar os Estados Unidos com competência e coerência. A maneira caótica e desconexa como as tarifas foram calculadas, divulgadas e adiadas pareceu uma paródia do que deveria ser a formulação de políticas. Isenções intermitentes e tarifas setoriais promovem o lobby. Durante décadas, os Estados Unidos sinalizaram cuidadosamente sua dedicação a um dólar forte. Hoje, alguns assessores da Casa Branca falam sobre a moeda de reserva como se fosse um fardo a ser compartilhado – sob coerção, se necessário.
Inevitavelmente, isso deixa o Federal Reserve em dificuldade. Trump está pressionando o banco central a reduzir as taxas de juros. É provável que os tribunais o impeçam de demitir os diretores do Fed como bem quiser, mas ele poderá nomear um novo presidente mais complacente em 2026. Enquanto isso, as outras políticas de Trump – como o envio de migrantes para El Salvador sem audiência ou a perseguição a escritórios de advocacia que o desagradam – fazem pensar que os direitos dos credores estrangeiros podem ser prejudicados.
Tudo isso criou um prêmio de risco para os ativos americanos. O mais chocante é que também está fácil imaginar uma crise total no mercado de títulos. Os estrangeiros possuem US$ 8,5 trilhões da dívida pública, um pouco menos de um terço do total; mais da metade desse valor está nas mãos de investidores privados, que não podem ser persuadidos pela diplomacia ou ameaçados com tarifas. Os Estados Unidos precisam refinanciar US$ 9 trilhões de dívidas no ano que vem. Se a demanda por títulos do Tesouro enfraquecer, o impacto será rapidamente transmitido ao Orçamento, que, devido à dívida alta e aos vencimentos curtos, é sensível às taxas de juros.
O que o Congresso faria, então? Quando os mercados entraram em colapso durante a crise financeira global e a pandemia, a Casa agiu com firmeza. Mas essas crises exigiam que gastasse, não que impusesse cortes. Desta vez, o Congresso precisaria cortar os direitos previdenciários e aumentar os impostos rapidamente. Basta conferir a composição do Congresso e da Casa Branca para perceber que os mercados talvez precisassem fazer muita pressão para que enfim o governo chegasse a um consenso sobre o que fazer. Durante esse momento de hesitação, o choque poderia se espalhar dos títulos do Tesouro americano para o restante do sistema financeiro, provocando calotes e estouros de fundos de hedge. É o tipo de comportamento que se esperaria de um mercado emergente.
O Fed, por sua vez, enfrentaria um dilema doloroso. Poderia comprar ativos para estabilizar o navio. Mas evitaria dar a impressão de estar monetizando a dívida de um governo sem credibilidade – medida especialmente arriscada quando a inflação está alta. Conseguiria encontrar o equilíbrio entre empréstimos emergenciais e financiamento monetário? E se o Fed não estivesse socorrendo Trump, o presidente aprovaria que o banco central emprestasse dólares a bancos centrais estrangeiros sem liquidez, como costuma fazer em momentos de crise?
Uma moeda é tão boa quanto o governo que a respalda. Quanto mais tempo o sistema político americano passasse fracassando no enfrentamento de seus déficits ou flertando com regras caóticas ou discriminatórias, maior a probabilidade de uma reviravolta sem precedentes empurrando o sistema financeiro global para território desconhecido. Mesmo que as coisas se acalmassem, a redução do papel do dólar seria uma tragédia para os Estados Unidos. É verdade que alguns exportadores se beneficiariam de uma moeda mais fraca. Mas a primazia do dólar reduz o custo de capital para todos, desde famílias que querem comprar seu primeiro imóvel até empresas de ponta.
Mordendo a mão que financia
O mundo sofreria porque não existe nada igual ao dólar – apenas imitações baratas. O euro é lastreado por uma vasta economia, mas a Zona do Euro não produz ativos seguros o suficiente. A Suíça é segura, mas pequena. O Japão é grande, mas tem dívidas gigantescas. Ouro e criptomoedas carecem de respaldo estatal. À medida que os investidores experimentassem um ativo e depois outro, a busca por segurança poderia gerar altos e baixos desestabilizadores.
O sistema dólar não é perfeito, mas fornece a base estável sobre a qual se ergue a economia globalizada de hoje. Quando os investidores duvidam da credibilidade dos Estados Unidos, essas fundações correm o risco de ruir. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU