A ficção nos tempos de incerteza – Revista de Cinema
Data: 20/05/2025 16:22:18
Fonte: revistadecinema.com.br
Há mais ou menos um ano atrás, à época da publicação do meu primeiro livro, eu escutava as impressões de leitura de uma amiga. Um dos contos se passa no Butantã, na Zona Oeste de São Paulo, em um café fictício, entre duas das principais ruas do bairro. A certo ponto da conversa, ela diz: “Caio, eu passo por ali quase todo dia, sabia que eu nunca reparei naquele café?”. Frente àquilo, lembro de sentir algo próximo à uma onipotência infantil; a sensação que uma criança tem ao inventar suas próprias fantasias, porque, assim como, através da brincadeira, ela reordena e cria o mundo à sua maneira, o escritor de ficção nada faz além de brincar com a realidade, por meio das palavras. Era como se, pela escrita, eu tivesse meios de realizar algo concreto; erguer de uma hora para a outra um prédio.
Fato é que eu poderia ter me aproveitado da ingenuidade da minha amiga, deixado a acreditar, pelo menos por algum tempo, que sim, existe ali naquela rua um café, como você nunca viu?, na esquina da Corifeu com a Vital, do lado daquele estúdio de pilates, em frente ao McDonald’s, vê se repara da próxima vez.
O que fiz, no entanto, entre risadas — não consegui segurar nem dois segundos —, foi confessar o meu crime.
Piglia também dizia que a escrita de ficção se passa sempre no futuro, ou seja, trabalha com aquilo que ainda não é. Quando se fabula, misturando elementos da realidade — ruas, espaços comuns e compartilhados por milhares de pessoas —, está se brincando, como num laboratório, com o que o presente poderia ser.
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Natalia Ginzburg abre sua mais importante obra com uma advertência: “Neste livro, lugares, fatos e pessoas são reais. Não inventei nada.” Em “Léxico familiar”, a escritora retrata de maneira romanesca a vida da sua família a partir dos anos 30, na Itália. E ainda que se trate de um livro extremamente verídico, isto é, os acontecimentos, fatos, lugares e pessoas se mostram condizentes com a realidade, como ela mesmo fez questão de dizer, Ginzburg termina o seu prelúdio com uma virada curiosa: “Embora extraído da realidade, acho que deva ser lido como um romance: ou seja, sem exigir dele nada a mais, ou a menos, do que um romance pode oferecer”.