Sindicato de juízes – Revista Oeste
Data: 21/09/2024 22:37:59
Fonte: revistaoeste.com
O olhar atento para as dezenas de itens que aparecem nos contracheques dos 18 mil juízes brasileiros ajuda a explicar por que o funcionalismo público virou um problema no país. Os dados disponíveis na base do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostram que o teto constitucional — hoje de R$ 44 mil — não é respeitado quando se trata dos magistrados. Pelo contrário: os salários chegam a dobrar com benefícios e penduricalhos que, seguramente, os pagadores de impostos nem sequer sabem que existem.
Os números compõem um estudo feito pela Transparência Brasil com os contracheques de juízes estaduais entregues ao CNJ. No ano passado, foram gastos pelo menos R$ 4,5 bilhões acima do teto constitucional — que, na época do estudo, era de R$ 41,3 mil. O país tem 91 tribunais. Esses bilhões, contudo, são subestimados porque só 18 Estados abasteceram a base do CNJ com todas as informações. Estão incompletos os cadastros de Mato Grosso, Amapá, Pará, Paraíba, Ceará, Tocantins, Sergipe e Distrito Federal. O Piauí não publicou os contracheques. Além disso, não foram contabilizados pagamentos de 13º salário e adicional de um terço de férias. As Cortes superiores de Brasília e os tribunais eleitorais não entram nessa conta.
De largada, algumas informações são alarmantes: todos os tribunais pagam salário médio acima do teto constitucional; o campeão é Mato Grosso do Sul, com R$ 85,7 mil; e um grupo de 565 juízes espalhados pelo país ganha mais de R$ 100 mil por mês. O estudo encontrou ainda 78 juízes que furaram o teto no ano passado em mais de R$ 1 milhão por causa de benefícios indenizatórios.
Esse drible no teto foi “legalizado” por meio de uma emenda constitucional aprovada no Congresso em 2005, no primeiro mandato de Lula. Diz o texto que “não serão computadas, para efeito dos limites remuneratórios, as parcelas de caráter indenizatório previstas em lei”. O resultado é uma chuva de penduricalhos. O malabarismo é tamanho que, ao detalhar os valores pagos, descobre-se a excrescência de 2,6 mil rubricas distintas de benefícios — sim, o número é este: 2.600.
Outra informação relevante é que não há padronização nas folhas de pagamento. Ou seja, elas mudam de um Estado para outro. Há dezenas de nomenclaturas genéricas, como “Pagamentos retroativos” ou “Gratificação por acumulação de acervo”. E casos ainda piores, com o uso de números no campo descritivo: “13.022,34”. O que esses números significam? Só quem recebe o benefício sabe dizer do que se trata. A própria Transparência Brasil chegou a assinar um termo de cooperação com o CNJ para tentar padronizar e abrir os dados do painel de remuneração dos juízes, mas até agora não houve resultado.
O período de férias dos magistrados é de 60 dias por ano, com a possibilidade de “vender” 20 dias e ficar com o dinheiro. Há regalias conhecidas, como auxílio-moradia, auxílio-alimentação, plano de saúde, gratificação de Natal, pré-escolar para quem tem filhos — há prêmio quando o bebê nasce —, adicional noturno, “licença para capacitação”, passagens aéreas, entre outras benesses impressionantes.
Por exemplo: provavelmente, a maioria dos brasileiros não sabe que os magistrados recebem uma “licença compensatória” por sobrecarga de trabalho ou acúmulo de serviço. Traduzindo: eles ganham um terço de adicional no salário se, por exemplo, substituem um colega durante a semana ou acumulam muitos processos na mesa. Logo, ganham “dias de folga”, que podem ser convertidos em dinheiro extra — como se trata de verba compensatória, está liberada para furar o teto constitucional. Os magistrados podem acumular até dez dias de folga por mês.
Não para por aí. A partir de janeiro do ano que vem, passarão a receber adicional de R$ 7 mil — ou poderão tirar folga a cada quatro dias de trabalho — se despacharem em cidades do interior do país. A regra vale para municípios com menos de 30 mil habitantes, em zonas de fronteira internacional ou se estiverem lotados a 400 quilômetros da capital do Estado. O nome desse benefício é quase um parágrafo: “Política Pública de Estímulo à Lotação e à Permanência de Magistrados(as) em Comarcas de Difícil Provimento”.
“Esse volume de dinheiro em pagamentos de benefícios e outros penduricalhos do Judiciário seria suficiente para cobrir políticas públicas relevantes para a sociedade”, afirma Marina Atoji, diretora da Transparência Brasil. “A Constituição determina o teto, mas os próprios atores é que legitimam ou não o que vem na legislação — e eles atuam para legitimar benefícios para si próprios”
Em janeiro, um relatório da Secretaria do Tesouro Nacional mostrou que o Brasil desembolsa 1,6% do produto interno bruto (PIB) com o Judiciário, algo em torno de R$ 160 bilhões. Desse montante, 84% são usados para bancar salários e aposentadorias. É a Justiça mais cara do mundo num ranking com 53 países, ladeada por concorrentes que não causam inveja, como Costa Rica, El Salvador e Guatemala. A média em economias mais vistosas pelo planeta é de 0,3% do PIB.
O jornal O Estado de S.Paulo tratou do tema em editorial na semana passada. O texto chamou a atenção para o discurso, em tom de sindicalismo de chão de fábrica, do novo corregedor nacional de Justiça, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Mauro Campbell. Embora o cargo seja dedicado a cuidar de denúncias contra os próprios magistrados, ele parece empenhado em ampliar salários e gratificações. O magistrado disse que “pautas remuneratórias ingentes [enormes] precisam ser equacionadas como forma de conter a perda de bons quadros”.
Aliás, aqui cabe uma ressalva importante. Qual é o órgão responsável por fiscalizar a burla ao teto constitucional nos tribunais? Resposta: a Corregedoria Nacional de Justiça, agora nas mãos de Mauro Campbell.
Se é fato que a Justiça brasileira é caríssima, isso não se reverte em eficiência. No ano passado, 35 milhões de processos deram entrada no Judiciário. Esse número aumenta 10% a cada ano, puxado pela Justiça do Trabalho. A estimativa do próprio CNJ é que 84 milhões de processos estão à espera de julgamento. Mas o ministro Luís Roberto Barroso disse que isso tem um lado positivo: “A população recorre ao Judiciário porque acredita nele, é um sinal de confiança”.
Barroso, aliás, lidera outra frente para aumentar os privilégios da carreira. Recentemente, passou a demonstrar sua aptidão para uma vaga de dirigente da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Cada vez mais corporativista desde que assumiu a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF), ele pressiona o Senado para votar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do “quinquênio”. Se passar pelo plenário, a emenda permitirá o aumento de 5% na remuneração dos juízes a cada cinco anos, independentemente do impacto orçamentário ao caixa da União.
A ideia de criar um sindicato de juízes é real. Já foi escolhido até um nome: SindiMagis. Quem lidera o projeto é a juíza Cyntia Cordeiro, do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região. Como envolve representantes de um Poder, não é certo se terá amparo legal nem se vai prosperar — e os magistrados já têm as associações que os representam, como a AMB e a Ajufe.
Cyntia Cordeiro afirmou ao portal jurídico Jota, no ano passado, que “muitos juízes não estão aguentando a pressão” e sofrem com a falta de reajuste e com o arrocho financeiro.
A Transparência Brasil parece estar mais conectada à sociedade. “O fato de serem instituições do sistema de Justiça é realmente agravante, porque afeta a confiança do público sobre os membros desses Poderes, que atualmente está em baixa”, diz Marina Atoji. “Aliás, é um estado quase insustentável.”
Em resumo: quando um pagador de impostos, que jamais sonhou com essas regalias no seu contracheque, diz que a Justiça brasileira custa caro e não funciona, ele não está errado — e os números estão aí para provar.
Leia também “A hora da anistia”