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Ocultação patrimonial como hipótese que autoriza desconsiderar personalidade jurídica

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Data: 21/07/2024 06:41:09

Fonte: conjur.com.br

Opinião


O Acórdão nº 2.095.942/PR, proferido pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça e publicado em 3/7/2024, reconheceu a possibilidade da desconsideração inversa da personalidade jurídica em uma ação de execução na qual a sociedade empresária exequente objetivava a DIPJ de empresa pertencente aos filhos dos devedores (pessoas físicas).


No caso ora debatido, em suma, a parte exequente argumentou que um dos imóveis, que integrava o patrimônio dos executados, foi, em 1999, alienado a terceiro, por preço muito inferior a seu valor, com reserva de venda a outros. Esse terceiro se valeu do imóvel para integralizar parte de sua participação no capital social da empresa dos filhos dos devedores em 2013.


Em 2014, no entanto, o mesmo terceiro se retirou da sociedade, recebendo, nesse momento, praticamente o mesmo valor pago no imóvel em 1999. Em perícia, comprovou-se que o bem valia cerca de R$ 17,5 milhões além do valor percebido.


Assim, a cooperativa credora pugnou pela DIPJ, de modo que as dívidas das pessoas físicas passassem a ser objeto de responsabilização numa empresa agropecuária, criada pelos filhos dos executados.


Institutos


Conforme aduz Martins Filho (2000, p. 34), a teoria da desconsideração da personalidade jurídica viabiliza o atingimento do patrimônio de outra pessoa física ou jurídica, para fins de garantia de obrigação descumprida em uma relação jurídica anterior.


Spacca

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A DPJ consiste em método de perda da eficácia transitória dos efeitos da personalidade jurídica para determinadas obrigações, sendo sopesado o desapreço ao princípio da autonomia patrimonial em detrimento da satisfação do crédito de credores lesados pelo mau uso da pessoa jurídica. Já a desconsideração inversa trata-se do direcionamento de bens que estão em nome de uma pessoa jurídica para quitar débitos de seu sócio, em razão de fraude na propriedade destes bens.


Para a autorização dos institutos acima, devem ser demonstrados os fatos e fundamentos que caracterizam a confusão patrimonial ou o desvio de finalidade, nos termos do artigo 50 do Código Civil (CC).


A desconsideração inversa da personalidade jurídica se encontra no artigo 50, § 3º, do Código Civil, e no artigo 133, § 2º, do Código de Processo Civil, asseverando que as hipóteses elencadas de desvio de finalidade e confusão patrimonial também se aplicam à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.


Neves (2019, p. 381) afirma, que na hipótese da IDPJ inversa, o sócio figura como devedor e a sociedade empresarial como responsável patrimonial secundária, quando se constata que o sócio transferiu seu patrimônio pessoal para a sociedade empresarial com o objetivo de frustrar a satisfação dos direitos dos seus credores.


Mudança


A confusão patrimonial, requisito para a DIPJ ocorrida no caso em análise, obteve recente alteração pela Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874, de 2019), passando a abordar casos exemplificativos para a caracterização da confusão patrimonial, como o cumprimento reiterado pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa e, tendo como referência o recurso ora discutido, a transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações.


O artigo 50, § 2º, do CC, após a alteração descrita, rege os conceitos de confusão patrimonial de forma mais ampla, o que amplia a interpretação normativa do julgador, visando à proteção do credor que sofre de um abuso da personalidade jurídica devidamente comprovado.


Primeiro grau e STJ


Nesse contexto, o juízo de primeiro grau julgou improcedente o incidente, sendo tal decisão confirmada pelo Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), eis que não evidenciaram como suficientes as provas produzidas de que a sociedade foi usada para ocultação de patrimônio. Em segundo grau, foi ressaltado que a compra e venda do imóvel não demonstrou fraude ou blindagem patrimonial.


Ato contínuo, a matéria foi submetida do STJ, em recurso especial autuado sob o nº 2.095.942, mediante o qual o recorrente sustentou que restaram demonstrados pelas provas colacionadas aos autos o desvio de finalidade e a utilização da pessoa jurídica com o propósito blindar o patrimônio familiar em detrimento dos credores, ensejando a desconsideração inversa da personalidade jurídica.


O ministro Humberto Martins, relator do recurso especial, em seu voto, expôs que:


“(…) Embora se reconheça que a desconsideração inversa da personalidade jurídica seja medida excepcional, no presente caso, ficou suficientemente comprovada a finalidade fraudulenta das negociações envolvendo a empresa recorrida, especialmente quanto ao imóvel em questão.

Nesse contexto, cabe reformar o acórdão recorrido, pois está claro que houve uso da empresa recorrida pelos executados para ocultação de seu patrimônio em detrimento dos credores e que a titularidade da pessoa jurídica pelos filhos dos executados só reforça a presunção de que ela é usada para ‘blindagem’ do patrimônio da família, antecipando-se apenas os efeitos da futura sucessão.”


Na sequência, o ministro ainda usou, como fundamento de seu voto, o Enunciado nº 283, do CJF, segundo o qual “é cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada ‘inversa’ para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros”.


O voto vencido proferido pela ministra Nancy Andrighi fundamentou-se na ausência não dos requisitos para a desconsideração inversa da personalidade jurídica na espécie, tendo em vista que 1) se buscava responsabilizar a sociedade por obrigação de pessoas que não são sócias; e 2) a suposta blindagem patrimonial não foi causada pela autonomia patrimonial da pessoa jurídica, mas por negócio celebrado com pessoa física, cuja anulação não é mais possível em razão do decurso do respectivo prazo prescricional.


O voto do ministro Marco Aurélio Belizze, acompanhando o relator, aduziu que claramente os executados, por intermédio de terceira pessoa, tiveram o viés de ocultação patrimonial, eis que transferiram o bem imóvel para sociedade familiar composta pelos seus filhos e por eles, de forma oculta, controladas.


Sob esse viés, o STJ, tem firmado entendimento no sentido de que “a dinâmica das constituições e alterações societárias notadamente direcionadas a proteger o patrimônio dos devedores, desviando-o e reservando-o aos futuros sucessores legítimos, afastando-o do alcance dos credores, configuram práticas de utilização abusiva da personalidade jurídica, apta a atender aos requisitos legais para desconsideração da personalidade jurídica, na conformidade do art. 50 do CC.” (AgInt no AREsp n. 1.659.253/SP, relator ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 7/12/2021, DJe de 17/12/2021.7)     


Conforme observado, visando consolidar a orientação já estabelecida pelo tribunal da cidadania, fortalecida pela recente decisão da 3ª Turma, tem-se que a conduta ilícita, caracterizada pela tentativa de ocultação de bens do devedor, configura-se como uma das hipóteses de abuso da personalidade jurídica elencadas no artigo 50 do Código civil supramencionado, resultando na responsabilização dos envolvidos nessa atividade ilegítima.