Artigo: Criticar Israel ou ser antissemita? O caso dos estudantes da USP ameaçados de expulsão
Data: 17/01/2025 18:16:25
Fonte: oglobo.globo.com
Em novembro de 2023, a Reitoria da USP, após representações feitas pelas professoras Merari de Fátima Ramires Ferrari, coordenadora do curso de Ciências Moleculares, e Alicia Kowaltowsky, do Instituto de Química, e pelo professor do Instituto de Física e também pró-reitor de Pesquisa da USP, Paulo Nussensveig, instaurou processo administrativo disciplinar (PAD) contra três estudantes do curso de Ciências Moleculares e dois de outros cursos, por suposto “antissemitismo” e “discurso e apologia ao ódio”. O pedido, que também foi acompanhado por uma reclamação anônima, solicitava a suspensão imediata de um dos discentes acusados em razão das alegadas condutas ilícitas e “criminosas” com apologia ao terrorismo, preconceito e disseminação de ódio.
A procuradoria da USP prontamente acolheu a narrativa exposta na representação e propôs a abertura do processo disciplinar que pode importar na expulsão dos alunos por entender que a conduta de incitação ao ódio é gravíssima e ofensivo à dignidade humana. Fundamentou o pedido em controvertido, antiquado e autoritário dispositivo do Regimento Geral da Universidade, redigido em 1972, que assim dispõe:
“Artigo 249 – As penas referidas no artigo 249 deste Regimento serão aplicadas nos seguintes casos:
III – pena de suspensão nos casos de reincidência de falta já punida com repreensão e todas as vezes em que a transgressão ‘da ordem se revestir de maior gravidade;
IV – Pena de eliminação definitiva nos casos em que for demonstrado por meio de inquérito, ter o aluno praticado falta considerada grave.
Artigo 250 – Constituem infração disciplinar do aluno, passíveis de sanção segundo a gravidade da falta cometida:
IV – Praticar ato atentatório à moral ou aos bons costumes;
VII – Perturbar os trabalhos escolares bem como o funcionamento da administração da USP;
VIII – Promover manifestação ou propaganda de caráter político-partidário, racial ou religioso, bem como incitar, promover ou apoiar ausências coletivas aos trabalhos escolares;”.
Os tipos disciplinares acima referidos não apenas são amplos e imprecisos, como estão profundamente comprometidos com o ambiente autoritário em que foram produzidos. Eles tornam ilícitas condutas “atentatórias à moral e bons costumes”, sem dizer em que isso consistiria. Ademais, proíbem “manifestação política, religiosa ou racial” (fato corriqueiro na vida estudantil), bem como mero apoio a greves e outras “ausências coletivas aos trabalhos escolares”. Legislação disciplinar universitária semelhante talvez ainda exista em algum regimento da Coreia do Norte ou Afeganistão. Hoje em dia isto certamente é motivo de vergonha para uma instituição como a USP e deveria suscitar alguma reflexão de sua comunidade acadêmica e de sua procuradoria sobre o seu potencial violador da dignidade humana.
Quais fatos poderiam justificar a acusação de conduta antissemita e expressão de “discurso de ódio” cuja gravidade deveria justificar a expulsão dos alunos? Os fatos, como sempre, importam. Contudo, neste episódio, eles não foram suficientemente divulgados em razão do procedimento administrativo se revestir de certo sigilo (quebrado parcialmente em razão da divulgação de alguns documentos), razão pela qual, em muitos contextos, prevaleceu a narrativa dos autores da representação de que teriam ocorrido práticas de racismo, incitação ao terrorismo e antissemitismo. Vamos aos fatos.
Tudo começou no dia 10 de outubro de 2023, três dias após o brutal ataque do Hamas a Israel, quando aconteceu uma assembleia dos estudantes do curso de Ciências Moleculares que estavam em greve. Estiveram presentes cerca de 35 alunos. Nesta ocasião foi produzida uma ata, na qual foram feitas as seguintes alegações, posteriormente objeto de retratação formal. Transcrevo o texto em sua íntegra, porquanto relevante para a correta contextualização dos fatos.
“Informe sobre a situação da Palestina
Na manhã de sábado, forças palestinas iniciaram uma ofensiva histórica contra o colonialismo israelense a partir da Faixa de Gaza, região palestina que vem sendo ocupada por Israel há 16 anos de maneira colonial, baseada em assentamentos coloniais em terras e cidades palestinas roubadas. As forças armadas engajadas na operação Tempestade de Al-Alqsa são várias, lideradas pelo Hamas, a força mais organizada e bem estruturada, apesar de controversa entre o povo palestino. Todas as forças políticas palestinas mantêm um contato básico para garantir unidade de ação militar.
A ofensiva foi histórica e deixou o exército israelense paralisado nas primeiras horas, nas quais diversos assentamentos foram retomados, vários militares israelenses foram feitos prisioneiros. Assim que se iniciou a retaliação da parte de Israel, com bombardeios indiscriminados em áreas civis, como se pode inclusive verificar em vídeo postado nas redes sociais do primeiro ministro de Israel, 250 palestinos foram mortos rapidamente, os bombardeios covardes continuam até agora e se intensificam, com mais de 750 palestinos mortos, desses, quase 200 são crianças. Além disso, o ministro da defesa israelense, declarando que os palestinos são animais humanos que seriam tratados como tais, anunciou o corte do abastecimento de água, energia elétrica e combustível para a Faixa de Gaza, que é, há 16 anos, uma prisão murada a céu aberto cujo fluxo de bens e pessoas é completamente controlado por Israel. Esse tipo de cerco, além de ilegal perante o direito internacional, impede o funcionamento dos serviços de saúde, hospitais na faixa de gaza, enquanto os bombardeios aumentam. É importante lembrar que essa ofensiva da resistência palestina ocorreu em resposta à desecração da mesquita de Al-Aqsa e da agressão de mulheres envolvidas no funcionamento da mesquita. Além disso, nos últimos meses Israel vem escalando o conflito com reiteradas tentativas de invasão a Jenin, terceira maior cidade da Cisjordânia e foco importante da organização da luta armada palestina.
Os bombardeios estão perto da fronteira com o Egito e Israel já bombardeou o Líbano, que retaliou e mobilizou-se para uma resposta militar de maior escala.
A mídia brasileira e alinhada com o bloco imperialista estadunidense vem focando numa campanha de desinformação, entrevistando brasileiros que moram lá contando histórias pessoas de familiares ou amigos que sofrem com o conflito, tentando pegar as pessoas no emocional e tentando gerar ódio aos palestinos, desumanizando-os e os caracterizando de terroristas que matam civis israelenses sem motivo. É importante frisar que não há civis em Israel, menos ainda nas Faixa de Gaza e na Cisjordânia, regiões de assentamentos coloniais mais recentes, extremamente militarizados para garantir o roubo de terra palestina. Todo israelense, ao completar 18 anos, tem de servir no exército por três anos (2 anos e 8 meses). Dessa maneira, considerando a situação colonial e o fato de que todo israelense, homens e mulheres, são militares, o que temos é uma população não civil militarizada habitando terras roubadas. Não há, portanto, civis em Israel, como não havia civis franceses na Argélia no século XX nem civis franceses no Haiti no século XVIII na revolução haitiana.
Para contextualizar o genocídio, fascista, colonialista e racista que Israel pratica, antes do início desse conflito, 208 palestinos tinham sido assassinados por Israel esse ano e, nos últimos 21 anos Israel assassinou em média uma criança palestina a cada três dias. O exército israelense é um dos mais ricos e bem equipados do mundo, recebendo doações bilionárias dos EUA todos os anos.
É o papel de todo ser humano que se importa com a opressão e a exploração se colocar contra o projeto sionista, contra o colonialismo israelense, contra o Estado de Israel fundado no genocídio e no colonialismo. É fundamental que nos posicionemos em defesa da luta e da vida do povo palestino”. (Grifei os trechos que despertaram maior indignação entre os ofendidos)
Em face da repercussão negativa dos termos do documento acima transcrito, foi elaborada uma carta de retratação, divulgada no dia seguinte à divulgação do documento. Nele se lia que:
“Em referência à seção intitulada “Informe sobre a situação da Palestina” da ata da assembleia de curso do dia 11/10, o Centro Acadêmico Favo 22 vem a público se retratar, reconhecendo o seu grave erro na forma e no conteúdo desse informe, expressando, assim, um sincero pedido de desculpas a toda comunidade do Curso de Ciências Moleculares e a toda comunidade judaica. Gostaríamos também de esclarecer as circunstâncias da emissão deste informe.(…)
Reconhecemos ainda que houve, inegavelmente, erros gravíssimos no repasse. Para além da falta de sensibilidade geral, afirmações ofensivas sobre temas delicados foram proferidas, como a de que ‘não há, portanto, civis em Israel’ ou a de que ‘a ofensiva foi histórica’. Entendemos que o Estado de Israel possui um caráter militarizado, mas que há sim, naturalmente, civis em Israel que sofrem das consequências do conflito, e que jamais devemos enaltecer o sofrimento civil. Ademais, ressaltamos que todos os crimes de guerra e perda de vida humana são igualmente lamentáveis, entristecedores e revoltantes. Sendo assim, expressamos profundo pesar pelas ofensas que as falas causaram.(…)
O Centro Acadêmico assume responsabilidade integral pela má redação da ata, que não indicou, por exemplo, a autoria do informe nem a entidade que estava sendo representada. (…) (Grifos meus)
A despeito da rápida retratação e do debate que o documento original provocou, inclusive com a proposta de “criação de um grupo de estudo acerca do conflito e a abertura de uma plenária dos estudantes”, uma das representações feitas contra os alunos, julgou-a insuficiente e entendeu que “Esta ata (…) é racista, exalta ações violentas de grupos terroristas, e desumaniza vítimas de seus ataques.” Ademais, concluiu que “não existe uma verdadeira responsabilização no documento de ‘retratação’ que seja consistente com a extrema gravidade do material apresentado em ata”. Tais argumentos foram acolhidos pela portaria do pró-reitor adjunto de Graduação, professor Marcos Garcia Neira, que, acolhendo os argumentos da Procuradoria-Geral da USP, instaurou o processo administrativo.
No curso da investigação e coleta de depoimentos, foram feitas menções a outros fatos e manifestações em redes sociais que ampliaram o sentimento de ofensa expresso pelos autores das representações. Dentre eles, noticiou-se uma opinião de um aluno emitida em rede social que afirmava “não lamentar a morte de brasileira vítima do ataque do Hamas”, em razão do contexto da guerra. Contudo, por estarem tais discursos fora do escopo da acusação inicial, deixo de expô-los em detalhes.
O primeiro ponto a ser destacado é que o ambiente universitário foi seriamente atingido pelo episódio da guerra em Gaza e a forte repressão imposta pelo Estado de Israel à população palestina. Inúmeras reações ocorreram em diversas instituições universitárias de prestígio em todo mundo, em especial na Europa e nos Estados Unidos. Estranho seria se isso não tivesse ocorrido em face da enorme violência das atrocidades que deram início ao conflito e que continuaram por meses de retaliação desproporcional, objeto de ampla condenação por diversas instituições internacionais, países e organizações de direitos humanos. O que não se compreende, contudo, é o imediato e irresistível apelo que a adoção de medidas repressivas e duras tem para surgir como solução para lidar com a divergências de opinião. Afinal, por que motivo uma declaração de apoio ao povo palestino, feito sem demorada reflexão com relação a sua forma, marcada por um claro impulso emocional, mas que foi prontamente retratada, deveria justificar a expulsão dos alunos? Afinal, o sentido do debate franco de ideias não reside exatamente na possibilidade de fomentar o diálogo, ao invés de silenciá-lo?
O segundo ponto a ser destacado é que se verifica no episódio ocorrido na USP uma estratégia política autoritária de imposição de uma narrativa e de rotulações que, em vez de estimular e criar liberdade para o debate de ideias, o limita. Isto é patente com relação a acusação feita ao conteúdo da ata dos estudantes como “racista e antissemita” e configurador de conduta gravíssima. A leitura do documento deixa claro que a sua crítica se dirige a políticas adotadas pelo atual governo do Estado de Israel, e não ao povo judeu.
A distinção entre o povo judeu e o Estado de Israel é clara e conhecida, mas, na guerra retórica de versões, ela costuma ser deliberadamente negligenciada. Também não se identificam os termos antissionismo e antissemitismo. Distinguir sionismo de antissemitismo é fundamental. O sionismo busca a criação de um Estado judeu na Terra de Israel, enquanto o antissemitismo envolve preconceito e discriminação contra judeus com base em sua origem étnica ou religiosa. Algumas formulações do ideal sionista assumiram, historicamente, feições mais ou menos inclusivas e sectárias.
Sobre o tema da rotulação de críticas às práticas de guerra promovidas pelo Estado de Israel e ao antissemitismo, vale lembrar o que o Tribunal Penal Internacional (TPI) afirmou sobre a situação atual da Palestina. Nesta oportunidade, o tribunal rejeitou por unanimidade as contestações do Estado de Israel apresentadas sob os artigos 18 e 19 do Estatuto de Roma, afirmando:
“O TPI emitiu mandados de prisão para o Sr. Benjamin Netanyahu e o Sr. Yoav Gallant, por crimes contra a humanidade e crimes de guerra cometidos de pelo menos 8 de outubro de 2023 até pelo menos 20 de maio de 2024, o dia em que a Promotoria entrou com os pedidos de mandados de prisão.
Com relação aos crimes, a Câmara encontrou motivos razoáveis para acreditar que o Sr. Netanyahu, Primeiro-Ministro de Israel na época da conduta relevante, e o Sr. Gallant, Ministro da Defesa de Israel na época da suposta conduta, cada um tem responsabilidade criminal pelos seguintes crimes como coautores por cometer os atos em conjunto com outros: o crime de guerra de fome como método de guerra; e os crimes contra a humanidade de assassinato, perseguição e outros atos desumanos. A Câmara também encontrou motivos razoáveis para acreditar que o Sr. Netanyahu e o Sr. Gallant têm responsabilidade criminal como superiores civis pelo crime de guerra” [2]
O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu caracterizou a decisão do TPI como expressão de “antissemitismo”. O mesmo já ocorrera em janeiro de 2024, quando a Corte Internacional de Justiça (CIJ) afirmou a plausibilidade da hipótese de prática de genocídio por parte de Israel na Faixa de Gaza e impôs medidas provisionais visando fazer cessar atos de genocídio. Naquela oportunidade, Netanyahu tachou a decisão como um ato de “discriminação contra o Estado judeu”. Em contexto semelhante, o ex-ministro da Defesa Yoav Gallant caracterizou o requerimento formulado pela África do Sul para declarar a ilegalidade dos atos praticados pelo Estado de Israel como “expressão de antissemitismo”. Os episódios revelam como as críticas fundamentadas, baseadas em averiguação séria feita por organismos internacionais como o TPI e a CIJ, foram rapidamente qualificadas como expressão de antissemitismo e discriminação.
É também oportuno lembrar que o presidente Lula foi acusado de expressar “ódio antissemita” quando, em fevereiro de 2024, comparou o que ocorria em Gaza com o que Hitler fizera contra os judeus durante o nazismo. Ele afirmou, durante a entrevista coletiva que encerrou sua viagem à Etiópia, que “o que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existiu em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu. Quando Hitler resolveu matar os judeus” [3]. Alguns grupos e coletivos logo saíram em defesa do direito de expressão do presidente, refutando a acusação de antissemitismo [4]. Contudo, outras vozes insistiram na acusação. Netanyahu publicou no X que “as palavras do presidente do Brasil são vergonhosas e graves. Trata-se de banalizar o Holocausto e de tentar prejudicar o povo judeu e o direito de Israel se defender”. Em discurso em Israel, voltou à carga e afirmou que Lula agiu como “antissemita”. Alegou que: “ao comparar a guerra de Israel em Gaza contra o Hamas, uma organização terrorista genocida, ao Holocausto, o presidente Da Silva desrespeitou a memória de 6 milhões de judeus mortos pelos nazistas, e demonizou o Estado Judeu como o mais virulento antissemita. Ele deveria ter vergonha”. Críticas à declaração de Lula também foram emitidas pelo Museu do Holocausto dos EUA, que repudiou suas declarações como “falsas” e “antissemitas” [5].
Estes fatos indicam que a mera acusação de antissemitismo não pode ser tomada como verdadeira sem que o conteúdo do que foi dito e as suas circunstâncias sejam examinados com cautela e compromisso com a objetividade. Assim, se por um lado a nota feita pelo Centro Acadêmico Favo 22 foi inadequada na forma e no conteúdo, como a retratação afirmou, por outro lado, ela não configura a prática de racismo ou preconceito antissemita apenas porque algumas pessoas que se sentiram ofendidas assim o afirmem. Nem o TPI, nem o presidente Lula, nem a CIJ expressam discursos antissemitas apenas porque Netanyahu assim interpreta as críticas que são dirigidas às ações bélicas de Israel. Na verdade, elas não foram discursos antissemitas, mas, sim, censuras duras à forma como a guerra em Gaza foi conduzida pelo governo israelense.
É importante lembrar que acusar um interlocutor de “racista”, “antissemita” ou “praticante do discurso de ódio” constitui, em muitas circunstâncias, uma estratégia de censura, de silenciamento e de constrangimento ao discurso crítico mais duro e eloquente. Nessas situações, a acusação rotuladora pode se converter numa forma de imposição de uma severa consequência social (através do dano a reputação do interlocutor, do “cancelamento” ou do estigma) ou jurídica por meio do risco de um grave sancionamento, como a expulsão da universidade. É exatamente o que se verificou no caso em questão, quando a estratégia do diálogo e da pedagogia foi substituída pela violência do processo, da ameaça, da acusação da prática de crime e do silenciamento, sempre em detrimento da liberdade de expressão. Em outras palavras, quando se procurou silenciar uma voz crítica dos alunos através da ameaça de punição por expulsão e estigmatização pelo rótulo de “antissemita e racista”. É importante destacar que não é necessário concordar com as ideias dos alunos para reconhecer o direito de que elas sejam ditas sem a ameaça da repressão.
Em terceiro lugar, o caso é também interessante por envolver uma situação sobre a qual a sociedade em geral e a comunidade uspiana teve conhecimento apenas limitado e parcial. Isto porque o processo administrativo transcorre em sigilo e somente ganhou alguma publicidade em razão de matéria publicada no jornal Folha de S. Paulo em 24 de outubro de 2024 [6], mais de um ano após os fatos que provocaram a abertura do procedimento. Posteriormente, um grupo de professores da USP, que incluía Marilena Chaui, Leda Paulani, Carlos Augusto Calil, Sérgio Rosemberg, Ricardo Abramovay, Renato Janine Ribeiro, Paulo Eduardo Arantes, Sérgio Adorno, dentre mais de duzentos, organizou um manifesto em defesa do direito à liberdade de expressão e contra a expulsão dos alunos, por entender que, “além de críticas a Israel”, não há “nada que configure crime de ódio ou antissemitismo” [7]. Documento de teor semelhante elaborado por alunos também criticou a instauração do processo administrativo.
O debate público sobre este tema de sensível interesse para a comunidade, por envolver o importante tema da liberdade acadêmica e censura, esteve praticamente à margem do escrutínio público. Em razão de sua enorme importância, diversos intelectuais de expressão se envolveram com a causa, não apenas em solidariedade aos alunos, com também em defesa da própria liberdade de expressão. Os professores Paulo Sergio Pinheiro, Francisco Rezek e Paulo Borba Casella anexaram pareceres em defesa da liberdade de expressão dos alunos, atendendo a solicitação feita pela combativa advogada Maira Pinheiro. Se não fosse esta publicidade e a luz colocada sobre os fatos, um caso de silenciamento passaria em silêncio pelas instâncias burocráticas da universidade. Um tema central para a liberdade acadêmica ficaria circunscrito ao exame de apenas três pessoas que compõem a comissão processante.
Em quarto lugar, velhas confusões e erros conceituais acabariam por prosperar sem que a própria comunidade dela se desse conta. Dentre elas, a indiferenciação entre antissemitismo e a crítica às políticas do Estado de Israel, a confusão entre a incitação de condutas ilícitas e a mera advocacia de ideias [8], a confiança autoritária na imposição de sanção baseada num ambíguo e mal definido conceito de discurso de ódio, e também a compreensão rasa e equivocada do sentido da liberdade de expressão política e a liberdade acadêmica [9].
Em quinto lugar, o caso aponta para uma preocupante tendência existente no clima político e cultural do país de tratar cada vez mais temas de liberdade de expressão como questões de polícia, apelando à fé cega ou oportunista de que a boa razão será guardiã zelosa dos bons costumes, da civilidade e da verdade. A inclinação autoritária de nossas instituições de censura parece ganhar fôlego em contextos de acirramento de divisões de opiniões. Contudo, o ideal seria que, ao revés, a tolerância e o debate de ideias pudessem prevalecer. Para que isso ocorra é fundamental que o debate de questões como esta seja sempre feito publicamente e com amplo debate.
Casos semelhantes ao processo contra os cinco alunos que protestaram contra a violência extrema em Gaza ocorrem diariamente, em inúmeros contextos acadêmicos e não acadêmicos. A melhor lição que podemos tomar acerca deles é debatê-los, buscarmos as melhores justificativas para os posicionamentos e mantermos a cautela frente aos caminhos preferidos pelos censores e que apelam rapidamente à autoridade burocrática em busca de uma solução. Oxalá esta onda de repressão em Gaza tenha mesmo chegado ao fim, pois os ataques à liberdade de expressão vão continuar, cheios ou vazios de boa intenção.
*Ronaldo Porto Macedo Junior é professor titular da Faculdade de Direito da USP
NOTAS
[1] Visto que feitas as alegações finais da defesa, ainda se aguarda a decisão final por parte da Comissão Processante e posterior decisão pelo Reitor da USP.
[2] Ver: https://www.icc-cpi.int/news/situation-state-palestine-icc-pre-trial-chamber-i-rejects-state-israels-challenges
[3] https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/netanyahu-diz-que-lula-cruzou-linha-vermelha-ao-comparar-gaza-com-matanca-de-judeus-por-hitler/
[4] Reportagem “Coletivo de judeus defende Lula e diz que petista externou ‘o que está no imaginário’”, publicada no jornal Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2024/02/coletivo-de-judeus-defende-lula-e-diz-que-petista-externou-o-que-esta-no-imaginario.shtml
[5] https://www.terra.com.br/amp/noticias/brasil/por-que-comparacao-de-lula-entre-gaza-e-holocausto-enfureceu-israel,9b540333d1d0d90b30e7c0b55fe7fe9775uyyfk0.html
[6] Ver: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2024/10/usp-move-processo-pela-expulsao-de-cinco-alunos-acusados-de-antissemitismo.shtml. Antes, em 01/03/2024, um informe da Associação dos Docentes da USP chamara a atenção para o caso na matéria Reitoria persegue, processa e ameaça expulsar cinco estudantes que protestaram contra genocídio em Gaza: https://adusp.org.br/universidade/procadmin-gaza/
[7] Ver: https://www.band.uol.com.br/bandnews-fm/noticias/monica-bergamo-professores-da-usp-se-unem-contra-expulsao-de-alunos-que-criticaram-israel-202412170928
[8] Escrevi sobre o assunto nesta coluna.
[9] Escrevi sobre o assunto nesta coluna.