Cercados pelo medo, Avá-Guarani enfrentam ataques no oeste do Paraná
Data: 27/01/2025 10:37:31
Fonte: brasil.mongabay.com
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Comunidades indígenas da TI Tekoha Guasu Guavirá denunciam violência constante, insegurança alimentar e confinamento territorial; lideranças acusam proprietários das fazendas de soja e milho que cercam a reserva pelos ataques.
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A TI foi delimitada em 2018 pela Funai, mas sua demarcação está paralisada desde 2020 devido a disputas judiciais; atualmente, mais de 60% da área delimitada está ocupada pelo agronegócio, enquanto as comunidades indígenas conseguem ocupar menos de 1%.
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Os indígenas relatam também o uso de agrotóxicos como arma química, causando sintomas de intoxicação em pessoas animais; em algumas aldeias, as lavouras de soja chegam a menos de dois metros das casas.
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Removidos de suas terras ancestrais devido à expansão agrícola e à construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, os Avá-Guarani iniciaram um processo de retomada do território; proprietários rurais responderam com violência e racismo, acusando-os de serem “pseudoíndios”.
Os primeiros dias de 2025 trouxeram mais um capítulo de violência contra os Avá-Guarani no oeste do Paraná. Um ataque de pistoleiros na aldeia Yvy Okaju, localizada na Terra Indígena (TI) Tekoha Guasu Guavirá – a 643 km de Curitiba, capital do Paraná – feriu duas crianças e dois jovens. A TI foi identificada e delimitada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em 2018, mas a demarcação está paralisada desde 2020 devido a disputas judiciais.
As vítimas identificadas como Matidiel Velasque, 7, e Élder Benites, 14, se recuperam em casa. Doroteu Martines Jara, 25, ficou paraplégico e Elísio Galeano, 28, baleado no rosto, continua hospitalizado. “Não nos sentimos seguros dentro da nossa aldeia. Várias vezes fico acordado a noite inteira, não quero morrer dentro da minha casa”, relata o cacique da comunidade, que pediu anonimato. “Eu tenho duas crianças e uma esposa grávida. Para onde vou correr?”
O medo é constante. O cacique conta que os moradores vivem um dia de cada vez, sem saber se estarão vivos na manhã seguinte. A insegurança se intensificou desde o final de 2023, quando a aldeia realizou algumas retomadas e ampliações de território. Nesse período, 12 indígenas foram alvejados e ainda carregam cicatrizes e projéteis no corpo.
Vilma Rios, liderança da aldeia, conta que, desde então, os moradores têm presenciado pessoas rondando as casas enquanto ameaças de novos ataques persistem: “Minhas duas filhas pequenas não conseguem dormir. Elas falam: ‘mamãe, se dormirmos, não vamos escutar eles vindo. Como vamos sair se queimarem nossa casa?’”.
Para conter a escalada de violência, o governo federal publicou em novembro a portaria nº 812, que autoriza o uso contínuo da Força Nacional em áreas de conflito. Após o ataque, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) determinou o aumento de 50% no efetivo da Força Nacional na TI. No entanto, lideranças indígenas consideram a medida insuficiente.
Diversas organizações indígenas e indigenistas se manifestaram contra a violência sofrida no território. Em nota conjunta, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), a Articulação dos Povos Indígenas do Sul do Brasil (Arpin Sul), a Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (Arpin Sudeste) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) condenaram os ataques. “A atuação do governo federal é absolutamente ineficiente, quando não inerte; de fato, o governo parece acovardado”, destaca o comunicado.
A volta dos Avá-Guarani
Entre as fronteiras do Brasil e Paraguai, a TI Tekoha Guasu Guavirá ocupa 24 mil hectares no oeste do Paraná, distribuída entre os municípios de Guaíra, Terra Roxa e Altônia. O território, que abriga 14 aldeias, está cercado por plantações de soja e milho e sobreposto a 378 propriedades rurais. A área é alvo de 30 processos de reintegração de posse e interditos proibitórios, além de ações movidas por prefeituras e pela Federação da Agricultura do Estado do Paraná (Faep), que tentam anular a demarcação reconhecida pela Funai.
Os Avá-Guarani foram removidos de suas terras ancestrais nas décadas de 1940 e 1980 devido à expansão agrícola e à construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu. As consequências incluem remoções forçadas, mortes, alagamento parcial do território e devastação ambiental. Atualmente, mais de 60% da área delimitada está ocupada pelo agronegócio, enquanto as comunidades indígenas conseguem ocupar menos de 1%, segundo relatório da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY).
Para os indígenas, as ocupações, que frequentemente são chamadas de invasões, representam “retomadas” de seus territórios tradicionais. Essas decisões, lideradas pelos anciãos chamados chamõi, visam recuperar espaços sagrados. “Não somos simplesmente um povo sem terra. Nossa retomada está sendo feita dentro do nosso território ancestral e sagrado”, diz Ilson Okaju, liderança da aldeia. Ele explica que essas áreas abrigam locais importantes, como casas de reza e cemitérios indígenas, fundamentais para a espiritualidade e cultura do povo.
Desde junho de 2024, os Avá-Guarani intensificaram as retomadas, o que acirrou os conflitos na região. Além de pessoas baleadas, os ataques resultaram em duas casas incendiadas, plantações destruídas e uso de agrotóxico como arma química para a intoxicação de pessoas e animais.
As comunidades estão cercadas por monoculturas agrícolas, sem acesso adequado à água potável e com infraestrutura precária de educação e saúde. Apenas 12% da área delimitada mantêm sua vegetação original, de acordo com a CGY.
Acuados pelo agronegócio
O impacto do agronegócio sobre o território acontece associado ao uso intensivo de agrotóxicos, que afeta diretamente a saúde das comunidades. Em algumas aldeias, como a Pohã Renda, que fica na cidade de Terra Roxa, plantações de soja chegam a menos de dois metros das casas. Em outubro, tratores e caminhões carregados de pesticidas avançaram sobre essa aldeia, causando sintomas de intoxicação em crianças. “Os pequenos passam mal com diarreia, vômito e dor de cabeça. Levamos ao hospital, mas não conseguimos comprovar porque ninguém faz investigação”, denuncia o cacique da aldeia Yvy Okaju.
Em Terra Roxa, dos 1.209 estabelecimentos agropecuários, apenas 288 não fazem uso de agrotóxicos. Em Guaíra, 509 dos 661 estabelecimentos relatam o uso de pesticidas, ainda de acordo com relatório da CGY.
A contaminação vai além dos sintomas imediatos. Dados do Ministério da Saúde, obtidos e apurados pela Repórter Brasil e Agência Pública, mostram que, entre 2014 e 2017, mais de 1.300 cidades brasileiras detectaram resíduos de agrotóxicos na água potável. No Paraná, o problema afeta 326 municípios, incluindo as cidades em que a TI está localizada.
“A área da TI está apropriada de forma irregular pelo agronegócio, e todas as suas ferramentas são usadas contra os indígenas”, afirma Djoni Ross, doutor em Geografia e coordenador do Geolutas, grupo de pesquisa em lutas sociais. Ele destaca que o acompanhamento feito pelo grupo confirma a contaminação das aldeias por pesticidas.
Nos municípios de Guaíra e Terra Roxa, cerca de 80% das terras são destinadas a monoculturas de commodities agrícolas. A expansão do agronegócio na região teve início na década de 1970, consolidando a soja como a principal cultura, seguida pelo milho, em um cenário que reflete a dinâmica agrícola nacional.
As cooperativas agropecuárias desempenham um papel central nessa expansão, atuando em parceria com a indústria mundial da carne, já que a maior parte da soja brasileira é utilizada na produção de ração animal. “Cooperativas como a C.Vale, a Copagril e a Integrada são diretamente responsáveis pelas exportações, tanto de produtos in natura quanto processados. Elas continuam buscando ampliar a produção ou expandir o território”, explica Teresa Paris, consultora da Comissão Guarani Yvyrupa. Ela ressalta que, embora o agronegócio tenha atingido um limite para expansão territorial, mantém sob controle áreas produtivas que incluem as terras indígenas.
Espremidos pelas plantações, os Avá-Guarani enfrentam impactos severos em seu modo de vida. O confinamento territorial e a conversão de suas terras tradicionais em áreas agrícolas resultam em fome e precarização. “O agronegócio significa a expulsão de qualquer forma de vida em um espaço. As comunidades indígenas, por outro lado, representam a preservação da vida humana, animal e vegetal”, afirma Djoni Ross.
Os Avá-Guarani que vivem nessa região enfrentam não apenas a violência territorial, mas também o racismo e campanhas de deslegitimação dos seus direitos. Frequentemente chamadas de “falsos índios” ou “paraguaios invasores”, são alvo de discursos que questionam sua identidade indígena.
A ideia de que os Avá-Guarani seriam paraguaios que cruzaram a fronteira para aproveitar benefícios do Estado brasileiro é amplamente difundida na região. Esse discurso ecoa em declarações de autoridades públicas e representantes do agronegócio. Em julho de 2024, o governador do Paraná, Ratinho Júnior, afirmou: “Nós não vamos admitir que índios paraguaios invadam terras privadas aqui no Paraná”, em meio à intensificação de conflitos entre fazendeiros e indígenas.
O racismo institucional também se manifesta em ações locais. Em outubro, a Câmara Municipal de Guaíra aprovou um requerimento à Funai questionando os critérios para a emissão dos Registros Administrativos de Nascimento de Indígena (Ranis). O pedido foi justificado pelo “clima de tensão entre os autodenominados índios e os produtores rurais”.
No mesmo mês, produtores rurais organizaram uma manifestação contra os indígenas, alegando que enfrentam “risco iminente de novas invasões e violência”. Durante o protesto, produtores chamaram os Avá-Guarani de “pseudoíndios” e “campesinos paraguaios”, acusando-os de ameaçar a soberania nacional.
“Existe o entendimento equivocado de que os indígenas deixaram de existir naquele território, algo do passado. Quando eles retornam, muitas pessoas se questionam, ‘de onde vieram?’ e querem encontrar justificativa para isso. Afirmam que vieram do Paraguai, chamam de índios paraguaios e paraguaios fugitivos, não conseguem admitir que são pessoas que historicamente ocupam a região”, explica Clóvis Brighenti, professor de História da Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana).
A CGY enviou ofícios ao Ministério Público Federal (MPF) e à Defensoria Pública da União (DPU) pedindo a instauração de ações civis públicas contra discursos de ódio e incitação à violência. “É preciso ações de governo para reeducar a população local sobre a história e os direitos dos povos originários”, defende a organização.
O clima de medo é agravado por um sentimento anti-indígena que dificulta a sobrevivência da comunidade. Rodeados por fazendas, os Avá-Guarani enfrentam boicotes em comércios locais, que se recusam a vender produtos. Além disso, a circulação fora da aldeia tornou-se perigosa devido aos xingamentos e tentativas de atropelamentos.
Vilma, liderança da aldeia Yvy Okaju, relata que comerciantes da Vila Eletrosul, vizinha da comunidade, se recusam a vender alimentos para os Guarani e, em alguns casos, retêm cartões do Bolsa Família das mães em troca de compras. “A convivência com não-indígenas está gerando uma doença psicológica e sequelas graves no meu povo”, afirma.
Segundo Brighenti, que estuda a imagem e memória dos Avá-Guarani paranaenses, o discurso anti-indígena não se limita a setores conservadores, mas está enraizado em toda a região. “As nossas escolas e centros de ensino não fizeram o dever de casa de conhecer e tratar a história indígena”, explica.
Enquanto isso, as aldeias da TI Tekoha Guasu Guavirá dependem de ajuda humanitária para sobreviver.
Território em disputa
Delimitada pela Funai em 2018, a Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá enfrentou reveses no processo de demarcação. Em novembro daquele ano, a Justiça Federal do Paraná suspendeu o processo demarcatório e anulou procedimentos administrativos relacionados à identificação da área, em resposta a ações movidas pela Faep. Em 2020, as prefeituras de Guaíra e Terra Roxa reforçaram o entrave jurídico com uma nova ação conjunta.
Durante o governo Bolsonaro, sob a presidência de Marcelo Xavier na Funai, os estudos de demarcação da TI foram anulados, mesmo com recomendações do MPF para sua revalidação. Foi apenas em 2023, com a gestão de Joenia Wapichana no governo Lula, que os estudos voltaram a ser reconhecidos.
Em janeiro de 2024, o vice-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Edson Fachin, suspendeu todas as ações possessórias relacionadas à demarcação da TI. Fachin revogou decisões que impediam a Funai de avançar no processo e destacou que elas haviam sido tomadas sem garantir o contraditório e a ampla defesa às comunidades indígenas. Ele também acionou a Comissão Nacional de Soluções Fundiárias do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), sugerindo equilíbrio entre a proteção às terras indígenas e a indenização de proprietários de boa-fé com títulos anteriores à Constituição.
Apesar desses avanços, o destino da regularização da TI permanece condicionado à decisão do STF sobre a validade da Lei do Marco Temporal, que restringe a demarcação de terras indígenas às áreas ocupadas até 5 de outubro de 1988, data em que foi promulgada a Constituição Federal.
A assessoria jurídica da CGY critica a ausência de serviços básicos no território. “Embora a Constituição Federal garanta os direitos fundamentais, o Estado continua negando educação, saúde e saneamento, sob o argumento de que a área está em disputa possessória”, afirma. “Enquanto não houver regularização fundiária, os indígenas seguirão sendo discriminados e tratados como invasores em seu próprio território ancestral. A insegurança, a fome e o desamparo comprometem o modo de vida do povo Guarani”.
Os Avá-Guarani jamais foram efetivamente reparados pelos impactos da construção da hidrelétrica de Itaipu. Em 2019, a Ação Civil Originária (ACO) 3300, posteriormente renumerada como 3555, foi ajuizada no STF, buscando responsabilizar a empresa responsável por Itaipu e a União pelas violações de direitos decorrentes da obra.
O Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), por meio da Comissão de Conflitos Fundiários, acompanha a situação e tenta mediar acordos. O presidente da comissão, Fernando Prazeres, sinaliza um possível avanço. “Há chances de um acordo, e espero que em breve possamos viabilizar uma solução pacífica na região”, diz. No entanto, segundo ele, o entrave atual está na criação de um instrumento jurídico que permita a Itaipu adquirir as áreas disputadas.
A Secretaria de Segurança Pública do Paraná informou através de nota que reforçou o policiamento na região com o emprego de equipes do Batalhão de Polícia de Choque (BPChoque), do Batalhão de Polícia Militar de Fronteira (BPFron), além de patrulhamento aéreo, desde o início dos registros de conflitos.
Imagem do banner: Vilma Rios, liderança da aldeia Yvy Okaju, Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá. Foto: Mayala Fernandes