A (i)legitimidade dos animais para propor ações judiciais
Data: 28/01/2025 14:44:10
Fonte: migalhas.com.br
A possibilidade de os animais não humanos figurarem como partes em ações judiciais tem ganhado crescente destaque no debate jurídico e filosófico, especialmente com a repercussão de decisões judiciais recentes envolvendo esse tema. Essa questão reflete uma mudança importante na forma como os direitos fundamentais são compreendidos, sinalizando uma superação progressiva do paradigma antropocêntrico. O conceito de “especismo”, amplamente difundido pelo filósofo Peter Singer em Libertação Animal (1975), desafia a exclusividade dos direitos jurídicos aos humanos, defendendo que a capacidade de sofrer, comum a humanos e não humanos, é o alicerce da igualdade moral e jurídica.
1. Dignidade animal e famílias multiespécie
No cenário internacional, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada pela UNESCO1, estabelece que os animais possuem direitos, incluindo o direito de viver livres em seu ambiente natural, reforçando a ideia de que eles não devem ser tratados meramente como coisas ou bens.
No Brasil, a CF/88, em seu art. 225, § 1º, inciso VII, proíbe práticas que submetam os animais à crueldade, reconhecendo, de forma implícita, a dignidade desses seres. Essa proteção é fortalecida por legislações como a lei 9.605/98, que criminaliza maus-tratos e abusos contra animais, e a lei 11.794/08, que regulamenta experimentos científicos, restringindo-os a situações estritamente necessárias. Nesse sentido, João Baptista Villela observou: “Nem é necessário, de resto, saber exatamente o que são os animais para reconhecer que são portadores de dignidade e lhes garantir tratamento justo” (Villela, 2006, p. 13).
Essa noção de dignidade poderia justificar o direito de acesso à Justiça pelos animais, previsto no art. 5º, inciso XXXV, da CF/88? Esse dispositivo seria abrangente o suficiente para permitir que os animais, por meio de representantes legais, buscassem a tutela de seus direitos no Judiciário? A resposta afirmativa ganha força com o conceito de família multiespécie, promovido pelo IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, que reconhece os vínculos afetivos e jurídicos entre humanos e seus animais de estimação.
Este termo (multiespécie) refere-se à unidade familiar composta por seres humanos e seus animais de estimação, reconhecendo os vínculos afetivos e jurídicos estabelecidos entre eles. Conforme destacado em artigo de Joubert Rodrigues Rezende, “Família Multiespécie – Uma leitura caleidoscópica”2, “pode-se entender por ‘família multiespécie’ aquela formada pelo núcleo familiar humano e seu animal de estimação (pet), desde que presente o vínculo afetivo entre o humano e o animal” (REZENDA, 2024).
Tradicionalmente, o ordenamento jurídico brasileiro enquadrava os animais como bens semoventes, típicos objetos móveis dotados de movimento próprio. Contudo, essa perspectiva tem sido revisitada à luz de novas compreensões sobre a senciência animal e a profundidade dos laços afetivos entre humanos e animais.
Rodrigo da Cunha Pereira observa que “ao serem considerados seres sencientes, esses animais saem de um lugar de objeto, de ‘coisa’, para o direito. Com isso, há um entendimento de que os animais de estimação podem integrar uma família” (PEREIRA, 2025). Animais pets não teriam donos, mas “tutores”, com efeitos jurídicos como a fixação de alimentos, guarda e visitação.
A jurisprudência brasileira tem começado a refletir essa mudança de paradigma. Em uma decisão inovadora, o juiz Diego Santos Teixeira, do 15º Juizado Especial da Fazenda Pública de Curitiba, reconheceu o vínculo familiar entre um casal em situação de rua e seu cão, Rock Merlini. O magistrado fundamentou sua decisão nos arts. 1º, inciso III, e 226 da CF/88, que tratam da dignidade da pessoa humana e da proteção à família, respectivamente. Ele ressaltou que “o vínculo afetivo justifica a atuação do Poder Judiciário para proteger os direitos fundamentais”, incluindo o direito à convivência familiar que se estende aos animais de estimação no contexto de uma família multiespécie.
No âmbito internacional, observa-se uma tendência semelhante. Em 2024, o Juzgado de Primera Instancia número 7 de Santander, na Espanha, declarou a copropiedade e a custódia compartilhada de um cão entre ex-companheiros, reconhecendo o vínculo afetivo estabelecido entre ambos e o animal. A decisão considerou que “os animais são seres vivos dotados de sensibilidade” e que, portanto, devem ser tratados de maneira compatível com essa natureza.
Esses avanços refletem uma mudança significativa na compreensão das relações entre humanos e animais, reconhecendo a profundidade dos laços afetivos e a necessidade de proteção jurídica adequada. O conceito de família multiespécie, defendido pelo IBDFAM, representa um passo importante na adaptação do Direito de Família às novas configurações familiares da sociedade contemporânea.
2. Alguns precedentes
O Poder Judiciário brasileiro tem avançado no reconhecimento dos direitos dos animais e de sua legitimidade processual. Um marco histórico foi a decisão do Tribunal de Justiça do Paraná em 2021, que reconheceu os cães Spike e Rambo, vítimas de maus-tratos, como sujeitos de direito no agravo de instrumento 0059204-56.2020.8.16.0000. Representados pela ONG Sou Amigo, os cães ajuizaram ação contra seus antigos tutores. O juízo de primeira instância havia extinguido o processo em relação aos cães, sob o fundamento de que não possuíam capacidade de ser parte. Contudo, o Tribunal reformou essa decisão, afirmando que os animais podem figurar no polo ativo de demandas judiciais. Vale transcrever: “Reconheço a capacidade postulatória dos animais não humanos, representados por entidade que tenha por finalidade a proteção dos seus direitos, para figurarem no polo ativo de demandas que objetivem a tutela de seus interesses.”
Porém, ressalte-se que em uma decisão subsequente relacionada ao mesmo caso, a juíza Anatália Guedes, processo é 0005303-57.2020.8.16.0021, negou o pedido de indenização por danos morais e pensão alimentícia formulado pelos cães Spike e Rambo contra seus antigos tutores. Embora tenha reconhecido a prática de maus-tratos, a juíza entendeu que o dano moral e a pensão alimentícia são institutos aplicáveis apenas a seres humanos.
No plano internacional, destaca-se a decisão da Suprema Corte da Índia no caso Animal Welfare Board of India v. Nagaraja & Ors. A Corte declarou que os direitos garantidos aos animais sob as Seções 3 e 11 do Prevention of Cruelty to Animals Act e os arts. 51A(g) e (h) da Constituição Indiana não podem ser reduzidos. A decisão condenou práticas tradicionais que submetem os animais a crueldades, garantindo sua dignidade.
Outro precedente internacional importante é o caso “Tigre Júpiter”3, julgado pela Corte Constitucional da Colômbia, no qual foi reconhecido que os animais e o ecossistema possuem personalidade jurídica, sendo sujeitos de direitos. Essa decisão ilustra a evolução do entendimento jurídico para além da esfera antropocêntrica.
3. Reflexões necessárias
Conforme destaca João Baptista Villela, “os animais não são coisas” e possuem dignidade intrínseca, reconhecida por legislações de países como Alemanha, Suíça e Áustria. No BGB – Código Civil Alemão, a alteração de 1990 no § 90ª dispôs que “os animais não são coisas”, devendo ser tutelados por legislação específica4.
Para Ingo Wolfgang Sarlet (2009, p. 19), a dignidade da vida vai além da humana, destacando que o princípio constitucional da dignidade projeta um conjunto de posições jurídicas que tutelam a existência de todos os seres capazes de sofrer. A ideia de dignidade universal é reforçada por pensadores como Michel Serres (1990, p. 17), que propõe a celebração de um “contrato natural”, reconhecendo os animais como sujeitos de direitos no contexto de um pacto ético entre humanidade e natureza.
Nesta perspectiva, a legitimação processual dos animais, embora desafie a visão tradicionalista de que apenas os humanos possuem direitos jurídicos, é absolutamente defensável e necessária. O conceito de “contrato natural”, inspirado por Serres, propõe uma reconfiguração do pacto social, incluindo os animais como partícipes e sujeitos de tutela.
Ao romper com a separação cartesiana entre homem e natureza, conforme critério adotado por filósofos contemporâneos, o direito brasileiro caminha para uma perspectiva ecocêntrica, em que os interesses dos animais não são subordinados aos humanos. Essa evolução é essencial para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, que reconheça os direitos de todos os seres vivos.
Nesta perspectiva, a ampliação da legitimidade ativa processual para os animais não seria necessariamente uma equiparação entre humanos e não humanos. Há institutos que se manterão exclusivos dos humanos. Todavia, o reconhecimento de que os animais possuem interesses juridicamente relevantes, que demandam proteção e que devem ser mediada por representantes, que atuem em nome de seus interesses, tem justificativa constitucional, especificamente no conceito de proteção socioambiental.
4. Considerações finais
A ideia de que animais não humanos possam figurar como partes em processos judiciais é um tema que desperta um misto de curiosidade e reflexão profunda. Mais do que uma questão meramente técnica, essa possibilidade revela o grau de amadurecimento ético e jurídico de uma sociedade. Defender a legitimidade processual ativa dos animais é, antes de tudo, reconhecer que o Direito não é estático e deve acompanhar as transformações da consciência coletiva, principalmente em relação às relações entre seres humanos e as demais formas de vida.
A concessão de legitimidade processual aos animais reflete uma evolução jurídica e ética que transcende o antropocentrismo. Decisões como as do TJ/PR e de outras cortes demonstram que é possível e necessário tutelar os direitos dos animais, reconhecendo sua condição de sujeitos de direitos. A partir de uma interpretação constitucional progressista e de influências filosóficas contemporâneas, torna-se luminoso que a Justiça deve abarcar todas as formas de vida, garantindo um futuro de maior respeito e equidade interespécies.
A legitimidade ativa dos animais em ações judiciais pode ser interpretada como uma evolução necessária no ordenamento jurídico, alinhada ao princípio constitucional do acesso à justiça (art. 5º, XXXV, da CF). Essa interpretação permite que os interesses dos animais sejam tutelados por representantes legais, assegurando a proteção de seus direitos fundamentais, como a dignidade e a integridade.
Ao incorporar tais avanços, o Direito não apenas reflete a sensibilidade da sociedade contemporânea em relação aos animais, mas também responde às demandas éticas e jurídicas de um modelo mais inclusivo e ecocêntrico. A utilização de precedentes nacionais e internacionais fortalece a viabilidade jurídica dessa proposta, que caminha para um reconhecimento mais amplo e consolidado.
Essa perspectiva é reforçada pelo princípio da função socioambiental do Direito, presente no mesmo artigo constitucional, que prevê a defesa do meio ambiente como um direito e dever de todos. O acesso à justiça para os animais, portanto, não é uma inovação jurídica sem fundamento, mas uma decorrência lógica do arcabouço constitucional brasileiro.
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1 Marco ético e jurídico que reconhece a dignidade dos animais e a necessidade de protegê-los contra maus-tratos e exploração. A declaração enfatiza que os animais possuem direitos inerentes, independentes de sua utilidade para os humanos. A seguir, os principais pontos resumidos: Respeito à Vida Animal: Todos os animais têm direito à existência e devem ser respeitados como seres sencientes; Proteção contra Crueldade: É vedado submeter os animais a maus-tratos, atos cruéis ou exploração que cause sofrimento físico ou psicológico; Direito à Vida Natural: Animais selvagens têm o direito de viver livremente em seu ambiente natural, sem interferências humanas que comprometam sua sobrevivência; Proibição de Exploração: Animais utilizados para trabalho ou serviços não devem ser submetidos a condições degradantes, sobrecarga ou práticas que prejudiquem sua saúde ou bem-estar; Experimentação Científica: É inaceitável o uso de animais em experimentos que causem dor ou sofrimento, especialmente quando existem alternativas; Abate Humanitário: Animais destinados à alimentação ou outras finalidades devem ser mortos de forma rápida, sem dor ou angústia.; Educação Ética: A educação deve promover o respeito aos animais e sua inclusão como parte do equilíbrio ecológico.
2 O caso tratou de um tigre chamado Júpiter, que vivia em um zoológico na Colômbia em condições precárias, com sinais de maus-tratos e negligência. A ação judicial foi promovida para garantir melhores condições de vida ao animal e discutir a responsabilidade pela sua proteção. A discussão judicial transcendeu o caso individual do tigre, abordando questões mais amplas sobre os direitos dos animais e do ecossistema. A Corte Constitucional da Colômbia decidiu que tanto os animais quanto os ecossistemas possuem personalidade jurídica, ou seja, podem ser reconhecidos como sujeitos de direitos. A Corte argumentou que os animais são seres sencientes, capazes de experimentar dor e sofrimento, e, portanto, devem ser protegidos contra qualquer forma de crueldade ou negligência. O ecossistema e os seus componentes – incluindo os animais – têm valor intrínseco e devem ser protegidos por meio de normas e políticas públicas que assegurem sua integridade.
3 “Tiere sind keine Sachen. Sie werden durch besondere Gesetze geschützt. Auf sie sind die für Sachen geltenden Vorschriften entsprechend anzuwenden, soweit nicht etwas anderes bestimmt ist.” (Tradução: “Os animais não são coisas. Eles são protegidos por leis especiais. As disposições aplicáveis às coisas são aplicadas aos animais de forma análoga, exceto quando disposto de outra forma”.)
4 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da República, 1988.
5 BRASIL. Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 fev. 1998. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9605.htm. Acesso em: 27 jan. 2025.
6 BRASIL. Lei nº 11.794, de 8 de outubro de 2008. Regulamenta o inciso VII do § 1º do art. 225 da Constituição Federal, estabelecendo procedimentos para o uso científico de animais. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 out. 2008. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11794.htm. Acesso em: 27 jan. 2025.
7 CADENA SER. Un juzgado de Santander acuerda la custodia compartida de un perro por una ex pareja. Disponível em: https://cadenaser.com/cantabria/2024/09/12/un-juzgado-de-santander-acuerda-la-custodia-compartida-de-un-perro-por-una-ex-pareja-radio-santander/. Acesso em: 27 jan. 2025.
8 ESTRATÉGIA CARREIRAS JURÍDICAS. Justiça reconhece vínculo familiar de casal em “situação de rua” com seu cachorro: um marco na proteção das famílias multiespécies. Disponível em: https://cj.estrategia.com/portal/justica-vinculo-familiar-casal-cachorro/. Acesso em: 27 jan. 2025.
9 G1. Primeiros cães do Brasil a processarem ex-tutores perdem na Justiça pedido de indenização por maus-tratos. G1 Oeste e Sudoeste do Paraná, 18 out. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/pr/oeste-sudoeste/noticia/2023/10/18/primeiros-caes-do-brasil-a-processarem-ex-tutores-perdem-na-justica-pedido-de-indenizacao-por-maus-tratos-entenda.ghtml. Acesso em: 27 jan. 2025.
10 GUEDES, Anatália Isabel Lima Santos. Sentença no Processo nº 0005303-57.2020.8.16.0021. 3ª Vara Cível de Cascavel, Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, 2023.
11 INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA (IBDFAM). Família multiespécie: uma leitura caleidoscópica. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/2099/FAM%C3%8DLIA%2BMULTIESP%C3%89CIE%3A%2Buma%2Bleitura%2Bcaleidosc%C3%B3pica. Acesso em: 27 jan. 2025.
12 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. O que é família multiespécie: entenda conceito usado para embasar pensão alimentícia a animais de estimação. Disponível em: https://www.rodrigodacunha.adv.br/o-que-e-familia-multiespecie-entenda-conceito-usado-para-embasar-pensao-alimenticia-a-animais-de-estimacao/. Acesso em: 27 jan. 2025.
13 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Algumas notas sobre a dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana e sobre a dignidade da vida em geral. Revista de Direito Público, n. 19, 2009, p. 27-50.
14 SERRES, Michel. O Contrato Natural. Lisboa: Edições Piaget, 1990.
15 SINGER, Peter. Libertação Animal. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
16 SUPREMA CORTE DA ÍNDIA. Animal Welfare Board of India v. A. Nagaraja & Ors. Índia, 2014. Disponível em: https://indiankanoon.org/doc/39696860. Acesso em: 27 jan. 2025.
17 TEIXEIRA, Diego Santos. Decisão no Processo nº 0021352-92.2024.8.16.0182. 15º Juizado Especial da Fazenda Pública de Curitiba, Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, 5 jul. 2024. Disponível em: https://www.tjpr.jus.br/destaques/-/asset_publisher/1lKI/content/decisao-do-tjpr-reconhece-familia-multiespecie-e-devolve-cao-para-tutores-em-situacao-de-rua/18319. Acesso em: 27 jan. 2025.
18 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO PARANÁ (TJPR). Agravo de Instrumento nº 0059204-56.2020.8.16.0000. Cascavel, PR, 2021. Disponível em: https://www.tjpr.jus.br. Acesso em: 27 jan. 2025.
19 VILLELA, João Baptista. Bichos: uma outra revolução é possível. Revista Del Rey Jurídica, ano 8, n. 16, 2006.