Ainda estaremos aqui – ICL Notícias
Data: 02/03/2025 13:16:45
Fonte: iclnoticias.com.br
ouça este conteúdo |
readme |
Publicidade
A despeito das (necessárias) críticas – o cineasta bilionário, a atriz “privilegiada”, a família branca e rica do deputado Rubens Paiva e toda sorte de questões que envolvem o apartheid social e racial desse país – “Ainda estou aqui” (livro e filme) tem sido o que de melhor aconteceu conosco nos últimos tempos. Quem leu o livro (de 2015) sabe que Marcelo Rubens Paiva localiza a violência contra a sua família não apenas na militância do pai, mas também numa história mais profunda de violência que deita raízes no período colonial, na exploração, na escravidão de quase 400 anos, em suma, numa história brasileira montada exatamente para ser aquilo que se vê no filme: a felicidade da uma família (privilegiada) massacrada pela repentina invasão dos agentes do Estado, quase que dizendo que também a felicidade é um caso de polícia.
Com efeito, nada de novo debaixo do sol da Rocinha, do Pavão-Pavãozinho, de Canudos, da Maré, do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto e de todos os lugares onde o povo brasileiro se organizou e reorganizou exatamente para sobreviver às investidas do Estado. Aliás, em tempos de carnaval, o que é nossa grande festa senão – como lembra Luiz Antonio Simas – uma fresta de vida, rebeldia e alegria diante de tanta mentira e força bruta? Por essas e outras que celebrar o “carnaval” em torno de “Ainda estou aqui” é sim pensar na história inteira do Brasil, numa história da ditadura que para pretos, pardos e indígenas sempre foi uma constante, tal qual sempre anunciou o nosso imortal Ailton Krenak. E foi exatamente em torno da defesa dos direitos indígenas que Eunice Paiva – companheira de Rubens Paiva – reorganizou a sua dor e a sua existência num Brasil tão brutal. Conseguir o atestado de óbito de Rubens Paiva e defender os direitos indígenas foi a linha mestra de sua vida.
Que definitivamente a explosiva força do filme e do cinema sensibilize um poder judiciário que ainda está às voltas com o que restou da Ditadura, da Lei de Anistia de 1979, do banho de sangue que parte significativa das forças de segurança pública ainda promovem Brasil afora. Que definitivamente uma política continuada de Estado, de preferência numa espécie de emenda constitucional, promova as diversas comissões de mortos e desaparecidos e escancare o problema e debata a questão nas diversas instâncias de Governo e de Estado. Não dá para passar pano pra milico golpista nunca mais. Mais do que isso, que o Estado brasileiro promova uma discussão ainda mais ampla, uma espécie de “Estado de emergência humanitária”: quantos e quem são os indígenas mortos e desaparecidos desde no mínimo o início da República? Quantos e quem são os meninos pretos chacinados desde muitos antes da Candelária? Há poucas coisas mais sensíveis no mundo moderno que um cinema bem feito, que uma atriz brilhando no auge de sua carreira. Aproveitemos o momento para constatar e espantar o óbvio: 1964 é a história inteira do Brasil. Enquanto ele estiver por aí, ainda estaremos vigilantes e atentos por aqui. E se o Oscar quiser vir junto, que venha.