TI Jaraguá: a luta dos Guarani no menor território indígena do Brasil
Data: 03/03/2025 14:16:10
Fonte: operamundi.uol.com.br
O governo Lula anunciou recentemente a retomada da demarcação de sete terras indígenas localizadas no estado de São Paulo. A ação encerra uma paralisia de sete anos nos processos demarcatórios do estado e busca atender a reivindicações históricas do povo Guarani.
Entre essas reivindicações está a ampliação da Terra Indígena Jaraguá, localizada na cidade de São Paulo. Jaraguá é o menor território indígena do Brasil, possuindo uma área homologada de 1,73 hectare — isso é, um território menor do que o da Praça da Sé, no centro da cidade.
O retorno ao Jaraguá
Habitada por aproximadamente 800 indivíduos da etnia Guarani, a Terra Indígena Jaraguá (TI Jaraguá) está situada na região noroeste de São Paulo, no sopé do Pico do Jaraguá — o ponto culminante da cidade, com 1.135 metros de altura. O território é lindeiro ao Parque Estadual do Jaraguá, um dos últimos remanescentes de Mata Atlântica existentes na capital paulista.
A TI Jaraguá engloba duas aldeias na área homologada (Tekoa Ytu e Tekoa Pyau) e outras quatro aldeias na área reivindicada (Tekoa Itakupé, Tekoa Itaverá, Tekoa Itaendy e Tekoa Yvy Porã). Boa parte dos habitantes fala o dialeto Mbya, uma das três variantes modernas da língua Guarani, tombada como patrimônio imaterial pelo IPHAN.
A presença indígena na área do Pico do Jaraguá é anterior à colonização. No século XVII, a área integrava o Aldeamento de Barueri — o maior aldeamento indígena de São Paulo, fundado pelo padre Anchieta em 1560.
A região tem grande importância para a cosmologia dos Guaranis, sendo considerada uma “terra de passagem”, isso é, uma das rotas percorridas na busca pela “Terra Sem Males”. Expulsos pelos colonizadores, os Guaranis somente retornariam à região do Pico do Jaraguá na década de 1960, quando Jandira Augusta Venício (cacica Kerexu) e seu marido, Joaquim Augusto Martins, fundaram a aldeia Tekoa Ytu.
Várias famílias Guaranis se mudariam para a região nas décadas seguintes, levando ao surgimento de novas aldeias. Jandira foi responsável por organizar politicamente a comunidade e liderou a luta por melhorias, logrando a instalação de uma escola e um posto de saúde. Também foi responsável pela construção do “opy” — a casa de rezas, comandada por Sebastião Borges, o pajé Karai Tatandy.
A fim de preservar as tradições religiosas da comunidade, Jandira proibiu o ingresso de evangélicos na aldeia Tekoa Ytu. Outras importantes lideranças indígenas se estabeleceram nas aldeias do Jaraguá. É o caso de José Fernandes Soares, o pajé Karai Poty, conhecido por sua longa trajetória de luta pela demarcação de terras indígenas em São Paulo. O pajé se mudou para o Jaraguá após ter uma visão em que o local lhe foi revelado como uma terra sagrada.
Criação da Terra Indígena
Mantendo vivos os costumes, a língua e as tradições do povo Guarani, as aldeias do Jaraguá se tornaram espaços de grande importância para a preservação da cultura indígena em São Paulo. O crescimento urbano acelerado, entretanto, logo traria problemas graves. Nos anos 80, a explosão dos projetos imobiliários e a expansão da malha viária tornaram-se ameaças concretas à permanência dos indígenas no Jaraguá.
Para atenuar o problema, o Centro de Trabalho Indigenista (CTI) iniciou uma campanha em prol da regularização das aldeias. Em 1987, após a assinatura de um convênio com o governo paulista, a FUNAI demarcou a Terra Indígena do Jaraguá.
A demarcação, entretanto, se restringiu a menos de dois hectares, abrangendo apenas a área das aldeias Tekoa Ytu e Tekoa Pyau, ignorando a reivindicação dos Guaranis sobre a mata contígua — fundamental para preservar o modo de vida da comunidade e práticas como a caça, a pesca, a coleta, etc.
Submetidos aos efeitos deletérios da especulação imobiliária, os Guaranis testemunharam a devastação de parte substancial do seu território. A Estrada Turística do Jaraguá dividiu o núcleo principal da comunidade em dois lotes, isolando as aldeias. A urbanização privou os indígenas do uso da terra, aprofundando a exclusão social.
Disputas e ampliação do território
O território dos Guarani se tornou objeto de uma incessante disputa fundiária e seus moradores resistiram a sucessivas tentativas de expulsão. Em 1996, alegando ser dona da área, a família Pereira Leite, afluente clã de fazendeiros, tentou forçar os indígenas a deixarem a TI Jaraguá.
A ação ilegal de despejo contou com a colaboração da polícia militar, mas foi impedida pela intervenção do Ministério Público Federal. Joaquim Álvaro Pereira Leite, um dos herdeiros da família, seria nomeado Ministro do Meio Ambiente durante o governo de Jair Bolsonaro.
Posteriormente, os Guaranis tiveram de lidar com novos episódios de ocupação irregular fomentados pela construção do Rodoanel. Em 2009, uma nova ofensiva de posseiros tentou expulsar os Guaranis de suas terras, mas foi debelada na justiça.

Comunidade Guarani protesta em favor da demarcação da Terra Indígena Jaraguá, em junho de 2023
O projeto para ampliar a área homologada da TI Jaraguá foi retomado no segundo mandato de Lula, mas o trâmite foi prejudicado por seguidas contestações judiciais. Em 2013, já no governo de Dilma Rousseff, a FUNAI emitiu laudo antropológico reconhecendo a mata contígua à TI Jaraguá como “território de ocupação tradicional Guarani”.
O laudo serviu de base para que o governo federal baixasse a Portaria Declaratória Nº. 581, atendendo a reivindicação dos Guaranis sobre parte do Parque Estadual do Jaraguá. Com isso, a área declarada da TI Jaraguá saltou de 1,7 para 532 hectares.
Uma nova tentativa de apropriação da TI Jaraguá ocorreu em 2015, quando o ex-deputado Tito Costa entrou com um pedido de reintegração de posse, alegando ser o legítimo proprietário da área. O ex-parlamentar alegadamente queria construir um condomínio de luxo no local.
O pedido de reintegração foi aceito pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, mas uma decisão do Supremo Tribunal Federal suspendeu a liminar que autorizava o despejo. A pressão sobre as terras dos Guaranis seria agravada após o governo paulista sancionar uma lei concedendo os parques à iniciativa privada e autorizando a exploração econômica em áreas de preservação.
Novos ataques
Após o golpe parlamentar de 2016, o governo Michel Temer tentou reverter a ampliação da TI Jaraguá, anulando a Portaria 581 sob a justificativa de que o processo continha erros administrativos. Os indígenas imediatamente protestaram ocupando o Parque Estadual do Jaraguá.
Os protestos se estenderam por meses. Os indígenas desligaram as antenas de televisão, rádio e telefonia no pico, interrompendo as telecomunicações em parte da Zona Norte de São Paulo e em algumas cidades da Região Metropolitana.
A ocupação chegou ao fim em setembro de 2017, após o governo paulista se comprometer a não privatizar o parque e instituir uma comissão intersecretarial para avaliar as reivindicações indígenas.
Os Guarani seguem acossados pela especulação imobiliária. Em 2020, a Comissão Guarani Yvyrupa denunciou o corte de mais de 4 mil árvores em uma área vizinha à TI Jaraguá.
A área desmatada, objeto de um projeto de lei para ser convertida em um parque, foi destinada à construção de um condomínio com 11 torres erguido pela Tenda. Visando deter o desmatamento, os indígenas ocuparam o terreno ao longo de um mês e conseguiram forçar a revogação da licença.
Além das disputas fundiárias, os moradores da TI Jaraguá são submetidos a um grave quadro de exclusão social, acentuado pelo descaso do poder público. A maioria dos domicílios no interior da TI até hoje não possuem ligações com as redes de eletricidade, água e esgoto.
As residências são precárias e desprovidas de banheiro privado e, em alguns casos, convivem com esgoto a céu aberto e acúmulo de lixo. A ausência de saneamento provoca a difusão de doenças e faz com que a terra indígena possua o mais alto índice de mortalidade infantil da cidade de São Paulo.
A taxa de desemprego também está entre as maiores da cidade, fomentada em grande parte pelo preconceito no mercado de trabalho. Metade dos adultos que residem na TI Jaraguá estão desempregados. A venda de artesanato e programas como o Bolsa Família são essenciais para a sobrevivência das famílias mais vulneráveis.
No fim de 2024, já no governo Lula, o Ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, assinou portaria garantindo a retomada da demarcação da TI Jaraguá. A área reconhecida na portaria engloba os 532 hectares reivindicados pelo povo Guarani, revertendo a anulação da Portaria 581 efetuada pelo governo Temer. A medida é fundamental para garantir a posse dos Guarani sobre seu território histórico e proteger a comunidade das ofensivas dos especuladores.