‘Ainda estou aqui’: ‘A gente está vivendo a crueldade como forma de exercício do poder’, diz Walter Salles
Data: 03/03/2025 23:49:47
Fonte: oglobo.globo.com
Na noite desta segunda-feira (3), em Los Angeles, no dia seguinte ao Oscar de melhor filme internacional que o brasileiro Ainda estou aqui” ganhou, o diretor Walter Salles e os atores Fernanda Torres e Selton Mello deram uma coletiva de imprensa virtual mediada pela jornalista Flavia Guerra. Salles começou falando do agradecimento, em seu discurso, ao cinema brasileiro.
— Eu começava agradecendo ao cinema brasileiro, mas também o cinema latino-americano. Acho que uma cinematografia, ela não existe sozinha, ela também se relaciona com aquelas de outros países. Sinto muito orgulho, ainda mais depois de fazer “Diários de motocicleta”, de ser um ser um cineasta essencialmente brasileiro, mas também pertencia a algo maior, que a América Latina como todo, e a América do Sul em particular — disse. — Filmes da cinematografia brasileira, argentina, chilena, latino-americana, cinema independente americano… isso tudo sobra, porque vira memória.
Para Fernanda (que perdeu o prêmio de melhor atriz para Mikey Madison, de “Anora”), a noite de premiação foi muito especial “porque foi um dia do cinema independente dentro do Oscar”.
— O discurso do (diretor) Sean Baker, a atriz que a Madison é… ela é muito especial. E a maneira que eles fizeram aquele filme, é a mesma maneira que a gente fez o nosso, é cinema de grupo. Eles tinham um budget (orçamento) pequeno… é um filme assim que ela se joga sem rede, porque ela tem confiança no Sean Baker — elogiou. — Ele (Sean Baker) viu o filme (“Ainda estou aqui”) recentemente e, quando cruzou comigo, falou de quanto amou o filme, porque reconheceu nele o cinema independente, que é o que o Walter faz.
A atriz disse sentir que seu filme “é um primo de Anora”.
— “Anora” começa como uma comédia romântica e, de repente, tem um plot twist que faz você pensar na busca de afeto no mundo. E o nosso filme é sobre o afeto. Tive muito prazer naquela cerimônia e me senti assim muito entre nós com a premiação do “Anora” daquela maneira — disse Fernanda, para, no fim da coletiva, voltar ao assunto com um apelo. — Eu queria pedir para só mandarem amor para a Madison (que sofreu muitos ataques de brasileiros por ter levado o Oscar de Fernanda), mandem só amor porque aquela mulher é muito legal!
Equipe de ‘Ainda estou aqui’ no tapete vermelho do Oscar 2025
Equipe de mais de 20 pessoas está na cerimônia
Selton Mello (que em breve volta a trabalhar na série “Sessão de terapia”), por sua vez, se disse honrado por ter dado ao personagem de Rubens Paiva, “um homem que foi levado de casa e assassinado pelo estado”, o seu corpo para que ele vivesse novamente.
— Na primeira exibição do filme, em Veneza, eu falei: “Meu Deus, esse filme é o corpo do Rubens!”. Esse filme é o corpo do Rubens que nunca voltou — emocionou-se. — Eu não tive acesso a nenhuma imagem em movimento do Rubens. Nenhuma. Eu só vi fotografias e ouvi conversas. Eu conversei com o Marcelo, com os filhos e com as pessoas, com o Walter e todo mundo. Eu nunca quis imitar ele, ou tentar saber como ele falava ou como ele andava. Eu queria emanar algo espiritualmente.
Fernanda Torres arrematou.
— Tudo o que tinha sobrado para mim do Rubens Paiva era um retrato pálido. Eu sabia que o pai do Marcelo tinha sumido e tinha sido assassinado, mas era um retrato assim que estava desaparecendo. É muito incrível o que a literatura e o cinema têm feito. Porque hoje não é um retrato que tem dele, tem milhões de fotogramas. Hoje a família Paiva voltou à vida e jamais a esqueceremos, ela sempre estará aqui, o Rubens Paiva sempre estará aqui por causa da literatura e do cinema. Isso é a prova de que eles existiram, não conseguiram apagar luz da memória — disse ela, para quem “o filme virou um movimento pátrio”. — O Brasil abraçou esse filme, as pessoas não assistiram a ele sozinhas em casa, é, numa plataforma de televisão. Elas foram ao cinema, ver e tiveram a experiência coletiva do choque emocional, um do lado do outro. Esse filme virou algo além dele, virou meio “Terra em transe”.
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Para Selton Mello, “os amantes também da arte, os que gostam de ler, os sensíveis” também foram premiados junto com “Ainda estou aqui”.
— Você imagina quanta gente agora viu esse movimento, viu esse filme, e está falando assim: “Ai, eu tenho tanta vontade de escrever e agora vou escrever!”. Ou “Nossa, eu tenho um sonho de fazer cinema, e eu vou fazer cinema!” Seja inspirado pelo Walter, inspirado por esse filme, inspirado por outros cineastas — discorreu.
Walter Salles observou que o momento no qual seu filme foi premiado é um de “fragilização crescente da democracia”.
— E esse processo está se acelerando cada vez mais. Então, a única coisa que eu posso atestar é o quanto esse filme, que fala de uma ditadura militar, se tornou próximo de quem o viu agora nos Estados Unidos. Acho que isso explica inclusive a maneira crescente com que ele foi sendo abraçado por aqui. E eu diria que não é só aqui, ele também, de uma certa forma, ecoa o perigo autoritário que hoje grassa no mundo como um todo. A gente está vivendo um momento de extrema crueldade, de uma prática da crueldade como forma de exercício do poder. A gente está no meio disso, o que eu acho profundamente inquietante.
O cineasta apontou “o jornalismo investigativo, a literatura, a música, o cinema”, como formas de expressão que se se tornam fundamentais, neste momento, “para trazer uma polifonia democrática dentro de uma coisa que se torna cada vez um funil autoritário”:
— Então, por isso que eu terminei ontem o discurso com um “Viva a Democracia e abaixo qualquer forma de ditadura”. Fico com receio período que a gente esteja próximo disso em vários lugares do mundo.
Fernanda Torres disse que aquilo que aprendeu ao interpretar Eunice Paiva, ela vai levar para sempre em sua vida.
— Eu tive a sorte de ser o cavalo dela para me apresentar dessa forma maior ao mundo. Eu pude me apresentar ao mundo com a grandeza da Eunice. As pessoas reconheciam em mim a grandeza que essa mulher tem, a civilidade dessa mulher, a inteligência, a elegância dessa mulher — contou. — Mas conforme eu fui andando (com o filme), eu fui ficando cansada, e fui aparecendo mais, com uma certa brutalidade, com o meu senso de humor. E aí eles foram descobrindo que eu não era aquilo tudo (risos).
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Walter Salles contou da declaração de amor por “Ainda estou aqui” que recebeu do iraniano, Mohammad Rasoulof, diretor de “A semente do fruto sagrado”, com o qual seu filme concorria (“e ontem quando veio o anúncio do prêmio, a primeira pessoa que eu abracei foi ele”). E também do ídolo, o cineasta alemão Wim Wenders, que promoveu uma sessão do seu filme debaixo de neve em Berlim (“ontem, uma pessoa veio me dizer que tinha se apaixonado pelo filme nessa sessão e que votou por ele”)
— A gente recebeu esse prêmio foi por gestos assim. Teve uma conjugação de cineastas independentes no mundo inteiro que viram o filme, abraçaram o filme e tornaram aquilo que aconteceu possível — comemorou.
Por fim, para Fernanda Torres, o grande trunfo de “Ainda estou aqui” é que ele toca “em lugares muito arcaicos do espectador”:
— Não importa em que país seja, muita gente me fala: “Eu não lembro que horas eu comecei a chorar, e não é um choro de depressão, é um choro de empatia, de amor.” Não é um filme do qual você sai deprimido, achando que a humanidade não tem jeito. Pelo contrário, você volta querendo amar teu pai, tua mãe, teus filhos, teu marido. Isso é muito o cinema do Walter, essa afetividade. Eu acho que isso é o que pega as pessoas.