25 anos do “Manifesto Popular Brasileiro” e o rap revolucionário: uma entrevista com Aliado G (Face da Morte)
Data: 05/03/2025 12:20:56
Fonte: emdefesadocomunismo.com.br
Por Teylor Lourival e Marcelo Hayashi | Redação
O rap no Brasil, na década de 90, foi construído com perspectivas políticas bastante demarcadas, como consequência da consciência racial e social, narrando o entendimento da juventude negra e periférica a respeito da desigualdade. O movimento hip hop produziu um instrumento político, cultural e intelectual coletivo à margem do Estado burguês, parindo o mais amplo registro histórico em fonte primária da realidade das periferias e favelas brasileiras no período.
Ainda que o rap tenha como característica essencial ser música de protesto e resistência, houve grupos e MCs como Clã Nordestino (Maranhão), GOG e Câmbio Negro (Distrito Federal) e Face da Morte (São Paulo), que trouxeram à tona uma outra forma de contar as histórias que eram apagadas pelo braço repressor do estado e pela dificuldade de circulação de informações à época. Muito diferente dos estigmas da burguesia sobre a cultura de periferia, estes grupos buscaram não só compreender e elucidar questões que ficavam debaixo do tapete, mas também transformar a realidade à sua volta na perspectiva do socialismo. Através de suas músicas, atingiram a consciência de classe de milhões de pessoas que passaram a se interessar de maneira mais profunda sobre a raiz dos problemas sociais da desigualdade brasileira e mundial. E mais do que falar sobre a realidade, eles buscavam protestar através dessa ferramenta artística.

Nesta linhagem revolucionária, o grupo Face da Morte foi formado em 1995 na cidade de Hortolândia – SP, por DJ Viola, Mano Ed e Aliado G. Com extensa discografia, o grupo vendeu mais de 150.000 cópias de discos por todo o Brasil, figurou por meses nas primeiras posições das maiores rádios do país e realizou shows em turnês nacionais para centenas de milhares de pessoas.
No dia 05 de março de 2000 foi lançado o “Manifesto Popular Brasileiro (MPB)”, quarto álbum do grupo, que demarcava ainda mais explicitamente o fundamento político, produzido, em grande parte, a partir de uma pesquisa de cerca de um ano de Aliado G na Unicamp, formando-se com profundidade a respeito da ditadura militar no Brasil, da história dos quilombos, das datas da memória da classe trabalhadora e da luta popular no país, entre outros temas, como reforma agrária e imperialismo.
Com centenas de referências que agitam a consciência revolucionária da classe trabalhadora brasileira, o álbum “MPB”, vinte e cinco anos após o seu lançamento, tornou-se um clássico do rap nacional e um registro histórico inestimável, utilizado ao longo dos anos em formações políticas de movimentos sociais e em salas de aulas por educadores e professores para ensinar a história do Brasil sob uma perspectiva popular.

Confira a seguir na íntegra a entrevista exclusiva concedida por Aliado G ao Jornal O Futuro, abordando sua trajetória política no rap, a pesquisa para produção e a repercussão do álbum, a musicalidade da obra e temas da luta de classes e da conjuntura global e nacional, como o segundo governo Trump, políticas públicas no campo da cultura e a “Lei Anti-Oruam”:
O álbum é o quarto do grupo, que já mostrava nos trabalhos anteriores consciência de classe avançada, tratando de luta de classes e política organizada, mas o álbum “MPB” é um ponto alto nestes termos, tratando abertamente de revolução, luta política popular e memória das lutas e da história da classe trabalhadora brasileira, e até de pontos como orçamento público, reforma agrária e imperialismo. A introdução, “Fazendo Escola”, escrita e gravada pelo GOG, traz uma reflexão interessante, porque apesar do rap ser uma música essencialmente política, de ideia forte, consciência de classe e de raça, esse rap demarcadamente comunista, revolucionário, operário, é de uma linhagem (uma escola) específica. Fala mais pra nós sobre a caminhada que levou você a radicalizar o pensamento político, aprofundar nos estudos, na organização, e adotar isso como linguagem central no rap e nesse álbum.
Aliado G: Começa percebendo, ao longo do tempo, fazendo rap, que a gente tinha um papel importante, o do protesto, e isso era fundamental. A reivindicação, chamar atenção para essas mazelas do gueto, da periferia, da classe social, da cor, enfim… Tudo isso era importante, mas mais do que falar do gueto e das mazelas sociais, eu queria também entender o porquê delas existirem, porquê do gueto existir, por que existiam os problemas que eu cantava? Fui tentar compreender, busquei o ponto de vista histórico e comecei a estudar, a querer entender, ter a compreensão para que a gente pudesse propor caminhos de transformação. Fazer um rap mais transformador, um rap que fosse mais propositivo, um rap capaz de despertar consciências como tinha despertado a minha quando fui tentar entender por quê eu cantava aquilo. Não só cantar aquilo por cantar, mas saber por quê eu tô cantando, isso é importante.
Eu fui tentar entender o passado que construiu essa realidade, e de posse desse conhecimento, tentar transmitir para as pessoas a minha visão de como transformar essa realidade. Então, passa a ser um rap transformador a partir deste ponto, eu tentei trazer o elemento do despertar da consciência para a galera entender o por quê que eles querem que nós fiquemos distantes do conhecimento, distantes do entendimento e simplesmente siga xingando, esbravejando e nada mais. Entender que a polícia chega na quebrada pra bater, matar e atirar à esmo porque ela é o braço do Estado, então temos que entender quem é o Estado, como ele se constitui, como é a disputa de poder pelo Estado. Entender que poder não é só uma palavra abstrata, mas que de fato existem movimentos reais por trás disso tudo, né, então como eles se constituem? Quais são os poderes?
Então, sempre tentei trazer esse rap transformador e elucidativo, para poder dar informação, e assim, o conhecimento sendo a verdadeira arma. Como dizia o nosso glorioso amigo Lenin, “não existe movimento revolucionário sem teoria revolucionária”.
No álbum tem samples de Zé Ramalho, de Marinheiro Só, de um álbum de 1975 da sambista Geovana. Fala mais sobre essa riqueza musical, sobre esse resgate e a importância desse trabalho de curadoria. Pensando também na captação das vozes, nos scratches, na distribuição, nas partes operacionais, como foi o processo de produção desse álbum?
Aliado G: O Face da Morte sempre teve como traço marcante fugir do óbvio. Já no primeiro disco, “Meu Respeito Eu Não Enrolo Numa Seda (1995)”, já colocamos a música do Vangelis, “Carruagem de fogo (1981)”, para fazer a nossa “Carruagem da morte”. Na época me criticaram muito, mas depois fez muito sucesso, a música é um clássico até hoje. Depois fizemos “A vingança (1998)”, trazendo o reggae com um sample do Bob Marley. Queríamos trazer a brasilidade cada vez mais. Claro, no “Crime do Raciocínio” tinha muita influência de Dr. Dre, Eazy-E, NWA, Public Enemy, o que influenciou toda a geração do rap brasileiro nos anos 90, mas a gente tinha vontade de trazer a brasilidade.
Trouxemos a capoeira para dentro do rap na música “Bomba H”, e também tocávamos os próprios instrumentos. O KL Jay (Racionais MCs) me criticava na época, me dizia que o rap era sample e rima, mas depois acabou entendendo. Hoje não se fala mais isso, mas na época o pensamento era meio enquadrado. Como o disco falava muito de Brasil, materializamos esse verde e amarelo. Depois, o Face da Morte fez outro disco, o “Feito no Brasil (2004)”, então a gente sempre buscou músicas que se relacionavam com a nossa sonoridade e principalmente conteúdo. Hoje, nada mais óbvio de entender – e sigo achando que acertei nisso na época – que precisamos de música brasileira no rap para criar um rap verde e amarelo.
Na época a distribuição foi feita pela RDS e pela Sky Blue Music, então foi um processo de apostar, acreditar e criar uma tendência. Se você procurar, no rap, dos grupos que chegaram no topo da época, você não vai achar nada parecido com isso, então a ideia sempre foi achar um novo caminho pro rap.
Existe no álbum um trabalho de pesquisa robusto sobre a memória popular, quase uma contação de história oral, falando da história pela perspectiva de baixo, um olhar que foi muito tempo renegado e até hoje é atacado pela “história oficial”. Em músicas como “Anos de chumbo” e as quatro últimas do álbum, “Janeiro-Dezembro”, existe uma profunda pesquisa de datas de luta, nomes de pessoas revolucionárias, nomes de quilombos, de organizações da imprensa negra, da memória popular como um todo. Isso é raro de encontrar, um estudo historiográfico da classe trabalhadora brasileira traduzido pro rap não é comum. Hoje em dia é até fácil encontrar professores e professoras que utilizam essas músicas do Face da Morte em salas de aulas. Por que você optou por fazer esse trabalho? Como foram feitas essas pesquisas?
Aliado G: Vejo o CD se transformando numa espécie de disco-livro, de forma espontânea, por professores que quando eram jovens ouviam rap. Na época foi pouco compreendido, foi extremamente e duramente criticado. Foi um ponto de virada na nossa carreira porque nós vínhamos de um estouro muito grande com o disco “Crime do Raciocínio (1999)”, e as pessoas têm as suas próprias expectativas, né? Muita gente queria que a gente seguisse na linha anterior, e o pessoal sempre espera algo quando cria um parâmetro, pensa: “Pô, fez “Tático Cinza “, “Televisão” e “Bomba H”, o que que vai vir agora?”. Se você faz algo muito diferente, pensam que o antigo era melhor, se você faz algo parecido, dizem que é mais do mesmo e não mudou nada. Então temos que fazer escolhas a partir do que acreditamos.
E hoje eu vejo os frutos disso. O disco serve como registro, bastante robusto, como você falou. Claro, ele é só a ponta de um grande iceberg, mas as pessoas quando têm contato com isso, passam a ter desejo de explorar mais. No passado, quando ouvi a música “Voz Ativa (1993)”, dos Racionais MCs, não sabia quem eram Malcolm X, Luther King, Zumbi, e aquilo me fez procurar saber. Minha inspiração em parte vem dessa música, Voz Ativa, e da transformação que ela teve na minha vida. Foi um momento de virada dos anos 2000, aquela discussão dos 500 anos, e eu acabei fazendo uma grande pesquisa aqui na Unicamp. Na época o GOG estava comigo e com o Flagrante MC, do grupo Realidade Cruel, sendo que a ideia era fazermos um disco num projeto nós três, mas eles acabaram não querendo participar e eu peguei todo esse material de pesquisa para lançarmos o disco dentro do disco do Face da Morte. Se você pegar o disco, tem outras músicas que não são assim, mas tá tudo ali, conectado, a música “Mudar o mundo”, “Caravana”, também são frutos dessa pesquisa de quase um ano que se materializou neste CD, o Manifesto Popular Brasileiro.

Esse álbum é um clássico do rap nacional, isso é um fato. Como foi a recepção do público do rap a essas ideias mais formuladas politicamente? E além disso, como foi a recepção desse álbum nos movimentos sociais? O MST e a UNE são bastante citados na obra do Face da Morte, por exemplo, fala um pouco sobre isso.
Aliado G: Teve de tudo, sabe? Dentro do movimento social, teve uma galera que pegou e absorveu, pirou com aquilo, muitos lugares repercutiram, dentro do próprio MST em assentamentos, até hoje o pessoal usa o disco como referência em cursos de formação. Nos movimentos sociais teve um impacto grande, o que gerou uma série de desdobramentos, a gente foi fazer muito debate, muita palestra.
Já no movimento hip hop, foi o oposto. Muita gente criticou, disse que não tinha nada a ver, que aquilo não era um disco de rap, que era um disco de história, enfim, foi muita polêmica. Vínhamos de um grande sucesso, porque “Crime do Raciocínio (1999)” foi um disco que nacionalizou o grupo, fez começarmos a viajar pelo país, turnê no nordeste e tudo mais, então tinha uma grande expectativa de seguimos naquela linha, e acabamos radicalizando para a politização no disco Manifesto (2000), o que causou muita estranheza.
Acho que ele era um disco à frente do seu tempo, ali. Hoje a galera entende melhor, ele precisou de um tempo de maturação grande porque era muito denso, né, mas acho muito interessante que hoje tem muito mais reconhecimento do que teve naquela época, pelo menos dentro do movimento hip hop.
Neste ano se completam 25 anos do lançamento do álbum, que ocorreu em 05/03/2000, certo? O que mudou na política do Brasil, na vida e na luta da classe trabalhadora? E o que continua igual?
Aliado G: A classe trabalhadora do mundo mudou, né? As relações entre o capital e o trabalho são totalmente diferentes, temos profissões que nem existiam quando esse disco foi lançado. Temos um mundo que não existia, com as redes sociais. Vejo um mundo do trabalho muito diferente, temos um aumento da exploração e uma concentração de renda maior. Tudo aquilo que cantamos lá atrás só se agravou, e a classe trabalhadora vem se deteriorando porque esta, inclusive, hoje nem se reconhece mais enquanto classe. As pessoas hoje dirigem Uber e se consideram empreendedoras… estamos vivendo um momento histórico bastante complexo no meu ponto de vista.
Na política do nosso país, por exemplo: não pela polarização, o que sempre existiu, mas hoje temos um parlamento que se apoderou do orçamento público desde o governo Dilma para cá, concentrando um poder muito grande na mão do Congresso Nacional. O presidencialismo está praticamente falido no país, o Presidente da República tem pouca margem de manobra para poder conduzir políticas públicas hoje no Brasil, uma economia muito globalizada, um Banco Central sequestrado pelos interesses financeiros, então nós vemos um quadro de certa tomada do empresariado à frente da política. Veja os bilionários junto de Trump: estamos em um momento em que o capital está à frente da política. Ele estava atrás, mas agora não tem mais vergonha de manobrar a política, agora eles colocam a cara. O que deve levar também a uma reação, porque quando um empresário só financia a política, é uma coisa, mas quando ele se coloca politicamente existem reações políticas: os povos resistem e esta é a história do mundo.
Acho que estamos chegando perto de um momento de reorganização política no Brasil e no mundo. Há toda uma questão geopolítica em curso, com o Trump e a ascensão da extrema-direita, uma certa falência das instituições perante o povo. Você vai falar de democracia e de sistema para as pessoas, hoje já não se sabe mais quem é anti-sistema, a própria extrema-direita se coloca como anti-sistema. E o cara quer saber da vida dele, no dia a dia… O cara trabalha, tem suas contas, não tem qualidade de vida pra ser feliz, é um momento que leva, como no passado, a figuras heróicas e autoritárias que se colocam como salvadoras, o que é extremamente despolitizado. Então vejo um mundo muito complexo hoje, mas vejo que reações estão por vir, acredito que vamos entrar em uma nova era, na qual já estamos, mas que a resistência dos povos vai fazer eclodir uma nova ordem mundial.
A música “Julgamento” narra um processo revolucionário liderado pelo povo e pelo rap. Nas próximas partes, fala de vários nomes do rap nacional, do movimento hip hop brasileiro, do movimento negro, são quase cinquenta referências. Literalmente, nomeando o júri, como se o rap fosse o tribunal dos povos que vai julgar os crimes da burguesia e que vai capitanear a revolução conduzida pelo povo. Entendo que essa é uma das mensagens centrais do Manifesto. Esse ainda é um papel importante pro rap vinte e cinco anos depois?
Aliado G: O papel do rap que eu acredito é esse. O problema é que eu não sou o detentor do monopólio do rap, o rap é um meio de comunicação e cada um faz dele o que pode, entrega a arte que é reflexo do que se pensa. Aí é que tá, se você é uma pessoa que tem algo a dizer, que acrescenta no mundo e faz rap, seu rap vai acrescentar. Se você não tem o que dizer, seu rap não vai dizer nada. Ou pode ser alguém que tenha algo a dizer, mas se tem um olhar comercial, o rap também pode ser comercial como são comerciais as camisetas com o rosto de Che Guevara. Estamos no capitalismo, e além do rap ser esse com concebemos, como instrumento de construção de consciência, o rap também é música e está dentro do entretenimento, da indústria do entretenimento, então o papel é diferente para cada pessoa que olha.
Eu acredito nesse rap. Mas não sou a pessoa que acha que não devem existir outros tipos de rap. É natural que a diversidade surja, mas acho uma pena que as grandes vozes do rap nacional hoje, que são muito representativas, não tenham a intenção de continuar esse legado que veio dos anos 90. Tanto que hoje chamam os anos 90 de “era de ouro”. Eu fico muito triste com isso, mas sei que as coisas são assim. No tempo que for necessário, com as mudanças do mundo, outros nomes vão surgir: outros nomes já existem, mas o problema são os algoritmos que não dão vazão a isso. Às vezes nós mesmos lançamos uma música, mas o algoritmo só entrega para as mesmas pessoas. Hoje não temos mais o formato da rádio, onde tinha a “Cento e cinco”, em que saiam os discos e todo mundo ia ouvir, hoje milhares de músicas são lançadas todos os dias.
Mas tenho muita esperança, sabe, que a reação popular indo de confronto com o mundo que cada vez mais oprime a classe trabalhadora, vai gerar também música de protesto novamente. Como tivemos no passado a música de protesto muito forte nos anos 70, 80 e 90, vimos o tempo passando, as eleições virando corriqueiras, o país evoluindo um pouco mais, mais gente na universidade, passou a querer-se mais conquistas… isso pode levar as pessoas muito mais pro lado do entretenimento, tanto quem consome quanto quem faz.

Um verso de “Anos de chumbo” faz a leitura de que um dos motivos centrais para a implantação da ditadura foi o econômico, um entendimento que já foi bastante escanteado. Outros vários versos debatem diretamente a reforma agrária e a “questão da terra”. Queria ouvir você falar com o povo da periferia sobre o nosso inimigo de classe, sobre a burguesia, sobre nossas lutas, deixa um recado para conscientizar a classe trabalhadora que ler o nosso jornal.
Aliado G: Sempre é o poder, poder é o dinheiro, um é reflexo do outro. Quando falo de reforma agrária, por exemplo, em um país como o nosso, que teve a construção econômica a partir da terra. O Brasil até se industrializou, mas ainda tem na agricultura o seu principal vetor econômico, hoje mais que nunca. É isso que querem, um país sem indústria de alto valor agregado. Produzimos o café, mandamos pros caras e eles devolvem a cápsula de café expresso. A gente planta o cacau, mas quem vende o chocolate é a Suíça. São várias contradições dentro deste capitalismo subdesenvolvido.
Nós não vemos nosso inimigo de classe. Não tem rosto, não tem nome. Estão por trás dos painéis da bolsa, não pisam no chão que nós pisamos, andam à jato e helicópteros, nem sabemos quem são, mas que detém o poder nesta fase financeirizada do capitalismo, em que não precisam nem produzir, o dinheiro vira dinheiro, não à toa a taxa de juros vive em discussão. Criou-se um mito de que a taxa de juros contém a inflação, aí o país não pode crescer porque gera inflação, aí é ruim pro povo então o governo não pode ter déficit e precisa subir a taxa de juros, mas a taxa de juros é justamente o que o governo paga pra quem tem títulos da dívida pública, o que impacta necessariamente no déficit. Enfim, é um monte de bobagem pra mascarar que, no fundo, os inimigos de classe são os detentores do poder financeiro e político, contando a história que querem para nós, sem mostrar quem realmente drena o país.
Gostaria de inserir duas perguntas sobre a sua visão a respeito da conjuntura atual. O teto de gastos e o arcabouço fiscal têm afetado e diminuído investimentos no campo da cultura, principalmente iniciativas negras e de periferia, sempre marginalizadas. Como você enxerga a situação atual da cultura no que diz respeito aos investimentos públicos? Da mesma forma, recentemente houve mais um movimento de criminalização do rap e do funk com a “Lei Anti-Oruam”. Qual é o seu entendimento dessa questão e qual deve ser a postura para combater essa movimentação?
Aliado G: Acho que a gente tá ruim, mas já estivemos piores… Há pouco tempo, a destruição foi quase completa. Agora estamos em um momento de reconstrução de políticas públicas no campo da cultura, mas ainda extremamente insuficiente. Acho que nunca tivemos nada muito eficiente. Lá atrás, a lei dos Pontos de Cultura (2014), era a elaboração mais interessante que já vi até hoje, consistindo na descentralização de recursos pra cima de um ponto onde algo já era feito, o que era interessante e precisa ser melhor desenvolvido. Uma pessoa fazendo aulas de violão na comunidade, uma contadora de história, são pontos de cultura. Era uma parada muito interessante, mas havia morrido.
Meu ponto é que as leis de incentivo são muito voltadas e orientadas ao mercado. O pessoal fala da Lei Rouanet e a criminaliza: eu também não gosto dela, mas por outros motivos. Nessa lei, você ganha um certificado e tem que ir atrás de uma empresa. Será que o Itaú vai querer bancar uma música do Face da Morte? Quais empresas se interessam pelo discurso do Face da Morte, por exemplo, ou de qualquer outro artista não voltado ao mercado? A função do Estado como facilitador para a promoção cultural precisa de uma política não orientada ao mercado, com outros critérios, e não leis de incentivo fiscal para que as empresas decidam quem é patrocinado ou não.
Quanto à “Lei Anti-Oruam”, entendo que isso é uma luta de ideias. O texto dessa lei não diz nada novo, diz apenas que o poder público não pode contratar artistas que fazem apologia ao crime em apresentações públicas onde menores de idade possam frequentar, e isso já é assim. Na prática, já funciona assim. Isso é luta de ideias, porque não se proíbe as pessoas de ouvirem músicas por decreto. Há pouco tempo, as crianças iam às festas e dançavam “na boquinha da garrafa”, isso não escandalizava ninguém. Claro, isso eu só estou dando como um exemplo, mas isso faz parte da luta de ideias. Quem está se promovendo em cima disso aposta na polarização: para que as pessoas tenham medo de ir para o inferno, alguém precisa criar o demônio, e assim o refúgio na igreja. Então vamos salvar as crianças de ouvir o Oruam senão as crianças vão para a droga e para o crime. Isso diz muito mais sobre a utilização da polarização e da luta de ideias na sociedade, do que a implementação de uma lei para que algo ocorra ou não. Chico Buarque era proibido e usava pseudônimos, e nada impediu dele de fazer a história que fez durante a ditadura militar, assim como Caetano e tantos outros. Então vejo que essa movimentação faz parte da luta de ideias e nada mais.

São vinte e cinco anos desde que o Manifesto Popular Brasileiro foi produzido. Qual mensagem você deixaria para alguém que nunca ouviu o álbum e vai ouvir agora?
Aliado G: Diria para que ouça com o coração. Ouvir com atenção, ouvir para tentar compreender e não apenas ouvir. Conheço gente que ouviu e nunca quis entender, e conheço gente que entendeu e teve a vida transformada.
Não consigo imaginar alguém que ouça esse disco, mastigue o conteúdo e absorva o disco, e não se sensibilize pela causa que tá apontada ali, que é a luta de classes, a história do nosso povo, a construção da identidade de quem somos e quem o tempo todo sofre ataques para ser destruído. Eles tentam reescrever a nossa história, apagar a nossa história, tentam dizer a nós que o mundo é assim porque é assim mesmo e sempre foi assim, como se não existisse um processo histórico que construiu a realidade atual.
Quem for ouvir, ouça com esses ouvidos, os ouvidos de tentar compreender que ali tem um conteúdo que vai ajudar, não vai te formar, mas vai te despertar para buscar uma formação mais densa e compreender quem é você, qual seu papel dentro da história e por que você é quem é, vive onde vive, tá situado no mundo onde tá. Quem não conhece seu passado, não compreende seu lugar no presente e dificilmente vai construir uma perspectiva de futuro que possa ser transformadora. Ouça com o coração, é isso que eu diria.
Igualmente, gostaria de deixar um espaço para demais considerações que possa ter.
Aliado G: Não tenho muito a acrescentar, as perguntas foram muito boas. Quero agradecer a você pelo carinho de construir essas perguntas, essa entrevista. Espero que as pessoas que vão acompanhar agora, tomar pé desse conteúdo, aproveitem bastante e sobretudo quero dizer que o que sempre quis e continuo querendo é despertar consciência de classe nas pessoas. A galera tem que usar essa consciência de classe para produzir música, seja rap, poesia, outro tipo de música, é indiferente, o que importa é a manifestação coletiva de consciência, consciência de que a gente precisa construir um mundo onde o bem comum seja a coisa principal. Igual eu falo na música “Mundo Livre (2004)”: sem derrotados e sem vencedores, sem explorados e sem exploradores.
Um mundo onde a gente tenha oportunidades de ser feliz, viver plenamente a partir de uma realidade que hoje é utópica mas que precisamos ter como horizonte e perspectiva, de construir um mundo mais justo, um lugar melhor para nossos filhos e netos, para as futuras gerações, uma árvore que plantamos não para ficar na sombra dela, mas para que um dia alguém possa aproveitar. Então, é com esse pensamento que eu luto.