Mafalda endividou-se e arranjou um segundo emprego, Anabela gastou as poupanças e não tira férias há 15 anos: tudo para pagar cuidados veterinários a um animal
Data: 19/4/2025 18:01:20
Fonte: cnnportugal.iol.pt
Até onde estaria disposto a ir por um animal de estimação? Há cada vez mais famílias a recorrer a soluções que muitos considerariam extremas para garantir cuidados veterinários aos seus animais. Recorrer ao crédito, abdicar de subsídios de férias e de Natal, arranjar um segundo emprego. Foi isso que sentiram na pele Mafalda Correia e Anabela Freire. E, garantem, voltariam a fazer tudo de novo. Seria um SNS Animal a melhor solução? Há quem discorde
Brown era a companheira de Mafalda Correia há onze anos. Por isso, quando a doença lhes bateu à força, na forma de um cancro “muito agressivo”, não se desenhou outro caminho: havia que fazer tudo o que fosse possível para prolongar a vida à cadela – ou, pelo menos, garantir que os últimos meses eram passados com qualidade, sem sofrimento.
A vida de Mafalda, hoje com 31 anos, ficou virada do avesso. Porque o amor pode não ter espécie, mas tem preço. A saúde de um animal tem um preço. E para esta tutora começou a tornar-se impossível pagá-la.
“Tive de começar um segundo emprego. E meti-me em coisas que são uma bola de neve: um cartão de crédito agora, um cartão de crédito depois. Ainda hoje, três anos depois, estou a acabar de pagar um”, conta.
Num primeiro momento, Mafalda Correia, hoje condutora de TVDE, pediu ajuda aos mais próximos. Depois recorreu às redes sociais. Apesar da solidariedade, as contas começaram a acumular-se. Esta jovem tinha feito um seguro de saúde para a cadela, mas estava limitado a alguns consultórios, onde a medicina veterinária tradicional não lhe dava mais de três meses de vida a Brown. Tentou a medicina veterinária integrativa, vista como alternativa – e mais cara. E aí o seguro não lhe serviu de nada.
“Fazia um tratamento eu vinha da Alemanha, tinha um custo de mais ou menos 450 euros por mês. Era para ajudar a que, pelo menos, aquilo que ela tinha não aumentasse. E para que tivesse alguma mobilidade, apetite, essas coisas”, recorda. Brown aguentou oito meses.
Medicina veterinária evoluiu, as exigências também
Durante os últimos anos, a medicina veterinária tornou-se muito próxima daquela que é aplicada aos humanos. “Há 20 anos tentávamos dar umas injeções e fazer raio-X, que seria o exame mais complicado”, aponta o veterinário Nuno Paixão.
Com essa evolução científica, os animais duram mais. Nos últimos anos, entraram em força nas casas dos portugueses. Segundo um relatório da Federação Europeia da Indústria de Alimentação Animal há pelo menos um gato em 39% das famílias portuguesas e 33% têm pelo menos um cão – números acima da média europeia. E cada vez mais são vistos como parte da família. Por isso, como fazemos com um familiar humano que fica doente, também para os animais procuramos agora todas as soluções que possam existir.
“Como se preocupam mais, também querem fazer mais, querem ir mais fundo, querem dar melhor qualidade de vida, querem ter maior probabilidade de salvar aquele animal. Só que, infelizmente, nem sempre o coração está ao lado de quem tem mais ou menos disponibilidade financeira”, remata o veterinário. E é aí que, muitas vezes, as contas se começam a acumular.
“Tinha um pé de meia, gastei todo. Passou dos mil euros”
Anabela Freire, assistente técnica hospital, tem três gatos: Rafael, Cali e Noah. E, mesmo sem problemas de saúde graves, já chegou várias vezes ao limite.
“Tinha um pé de meia, que gastei todo. Tive um gato com um problema na vista que teve de ser operado. A cirurgia, mais os tratamentos e a medicação pós-cirúrgica, passou dos mil euros”, explica.
Anabela tem abdicado de muita coisa. De jantares fora, da paixão pela roupa nova, do ginásio. Tudo para garantir que nada falta aos seres que são a sua única companhia em casa. E há 15 anos que não vai de férias fora de Lisboa. Os subsídios são para criar almofadas financeiras, não vá algum imprevisto acontecer. Até porque um dos gatos tem insuficiência renal e precisa de cuidados diferentes.
“É o subsídio de férias, é o subsídio de Natal, por vezes o IRS também ajuda um pouco. E quando há uma emergência, tenho de recorrer ao meu pai, que é reformado. Ou então, ir a um plafond que o banco me dá”, descreve. “Estou sempre com o coração nas mãos que surja algum imprevisto”.
Fazer as contas, contar com imprevistos
Os cuidados veterinários podem sair caros, sobretudo se o ordenado for pequeno. Tratar de um gato com diabetes, por exemplo, pode passar os 150 euros por mês. Realizar uma TAC a um cão, como Mafalda Correia teve de fazer quando descobriu o cancro da cadela Brown, vai aos 300 euros. E, por isso, há cada vez mais famílias a ir ao limite.
“Conheço muitas pessoas que se endividaram por causa dos animais, inclusive tiveram de pedir créditos bancários, pediram dinheiro emprestado e ainda hoje estão a pagar despesas de animais que já faleceram”, confirma Anabela Freire, que está muito ligada à causa animal.
Se vai adotar um animal, há contas que precisa de fazer. Segundo Pedro Fabrica, bastonário da Ordem dos Médicos Veterinários, os cuidados veterinários no primeiro ano de vida de um animal rondam os 200 euros, baixando nos anos seguintes. Já para alimentação, em média, a fatura ronda os 500 euros por ano. São custos que, diz o responsável, a maioria das famílias consegue cobrir. O pior é quando aparecem imprevistos.
“Se as famílias não tiverem uma fonte de poupança, é complicado. Essa despesa pode ir dos 200 euros aos cinco mil euros, em situações mais extremas”, confirma Pedro Fabrica.
“Conheço pessoas que, para fazer face a essas possíveis despesas, têm uma conta e que todos os meses vão depositando lá dinheiro, que dizem mesmo ‘é a conta dos meus animais”, junta Nuno Paixão. “E a mim não me choca que alguém peça um empréstimo para salvar o seu cão. Há quem peça empréstimos para férias, um cão é um bem mais precioso. É tudo uma questão de prioridades”.
SNS para animais? O caminho pode ser outro
Há muito que se fala da criação de um Serviço Nacional de Saúde para Animais, parecido ao SNS que temos para os humanos, de acesso gratuito e universal. Foi uma das ideias do PAN na altura de André Silva e chegou a merecer, já em 2022, uma proposta da Juventude Socialista. “Ter um hospital veterinário público é um sonho”, resume Anabela Freire.
E a Ordem dos Veterinários já fez contas para quanto custaria esse projeto. “São cerca de 400 a 500 mil euros por cada hospital. Tendo um em cada distrito e regiões autónomas, daria qualquer coisa à volta dos 10 milhões de euros”, aponta Pedro Fabrica. Mas é preciso juntar o valor da construção de cada um desses hospitais. O investimento inicial poderia chegar, por isso, aos 40 milhões.
O debate atira-se depois para os critérios de acesso: sendo público, teria de ser para todos, mesmo para aqueles que podem pagar. E, em último caso, alertam os veterinários, poderia levar a mais situações de acumuladores de animais ou de desresponsabilização dos próprios tutores, uma vez que não existiriam custos envolvidos.
Por isso, os veterinários ouvidos pela CNN Portugal argumentam que o melhor seria tirar partido das estruturas que já existem no terreno, recorrendo inclusive a parcerias público-privadas.
“Mesmo que exista um SNS animal, nunca vai conseguir chegar a toda a gente. Temos hospitais universitários, clínicas veterinárias, serviços veterinários municipais. Podia ser uma forma de se começar este projeto. Temos de começar por algum lado. Mas, para mim, há uma coisa essencial: justiça social, ou seja, garantir que quem precisa tem acesso e que quem não precisa, que pode pagar, o faça por si mesmo”, diz Nuno Paixão.
E como garantir que não pesavam tanto às famílias? Através de cheques veterinário, semelhantes aos que já existem para os humanos irem ao dentista. Neste momento, há autarquias no país que já dão este apoio às famílias consideradas carenciadas, permitindo acesso a uma rede de cuidados. O verdadeiro desafio seria cobrir todo o território e fazer chegar este mecanismo chegar também às famílias de classe média, cuja vida se desorganiza perante este tipo de imprevistos. E, para isso, o Estado precisa de injetar mais dinheiro nas autarquias.
“É uma questão de prioridades. Se for estratégia nacional e houver um reforço de verbas dedicado para o cheque veterinário no Orçamento do Estado, é algo que pode ser aplicado pelos municípios. Mas sabíamos que tínhamos uma ferramenta de fácil uso, a que as famílias que têm dificuldades recorrem”, atesa o bastonário.
Reduzir ou acabar com IVA: a solução desejada por todos
A medicina veterinária é a única que paga impostos em Portugal. E daí que mexidas no IVA sejam vistas como o caminho mais rápido e eficaz de aliviar as famílias das despesas que têm com os seus animais.
“Tudo o que tem a ver com alimentação, despesas e medicação veterinária, acho que o IVA devia baixar para os 6%. Já era uma grande ajuda”, defende Anabela Freire.
O bastonário Pedro Fabrica vai mais longe, no sentido da eliminação do imposto: “numa cirurgia de mil euros, falamos hoje de 230 euros em impostos, que podiam fazer toda a diferença na decisão das famílias de fazer ou não a operação. Estaríamos a alivar as famílias”. E também os veterinários, porque decisões como estas “causam muito desgaste mental e emocional ao médico veterinário, por saber que, muitas vezes, aquilo que é o ideal para o animal não pode ser feito por causa do valor envolvido”.
“Se encontrar um cão ferido na rua e ficar com ele, lhe der o tratamento necessário, vou pagar impostos que vão para o Estado, que não fez aquilo que era a sua própria competência na garantia do bem-estar animal”, junta Nuno Paixão. Ou seja, em última instância, esta poderia ser uma forma de retirar um peso ao próprio estado, favorecendo as adoções de animais errantes.
Preocupação é crescente: mais seguros de saúde a prová-lo
A preocupação crescente que as famílias têm com os seus animais de estimação, bem como a sua tentativa de evitar custos elevados se existirem imprevistos, nota-se num indicador: o número de animais cobertos por seguros em Portugal.
Dados cedidos à CNN Portugal pelas quatro maiores seguradoras no país mostram que existem hoje mais de 185 mil animais cobertos por estes seguros. De ano para ano, os crescimentos são a dois dígitos. E há mesmo uma seguradora que viu duplicar o número de apólices nesta área.
Ainda assim, o número de animais segurados ainda é uma fatia muito pequena daqueles que existem no país. Existem registados cerca de quatro milhões de animais, a que se junta outro milhão de errantes. Por isso, os animais segurados são menos de 5% daqueles que existem nos lares nacionais.
“É uma das coisas que temos de desenvolver. Os seguros de saúde para animais são uma forma de estarmos mais preparados para quando algo acontece”, insiste o veterinário Nuno Paixão.
Em Portugal também já existem associações, como a Animalife, que prestam apoio às famílias que sentem dificuldades em pagar os cuidados veterinários.
Tudo de novo, outra vez
O processo de tratar um animal é sempre desgastante. Sobretudo quando todas as tentativas falham e a morte se torna inevitável. Ainda assim, para quem deu tudo o que podia, fica a sensação de consciência tranquila. Mafalda Correia garante que voltaria a fazer tudo outra vez.
“Quando o sufoco estava a ser demasiado grande, ela, felizmente, teve essa compaixão por mim. Há quem acredite ou não, mas ela sentiu que eu já estava sobrecarregada e acabou por falecer em casa”. Tem outros dois cães, Mel e Trevo. O último entrou lá em casa poucos dias antes de Brown morrer. Para Mafalda, foi um sinal.
“O medo de que tudo se repita há de existir sempre, mas o amor que eles nos dão é maior”, diz Mafalda. “Dar conforto e uma vida digna a um animal, para mim, é tudo. Eu acho que isso supera todas as dificuldades que eu possa passar”, junta Anabela.
E você, até onde estaria disposto a ir por um animal de estimação?