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Kayo Amado, entre a consagração nas urnas e o real nas ruas – Por Danilo Tavares – Revista Fórum

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Data: 22/04/2025 13:57:02

Fonte: revistaforum.com.br

Reeleito com 87,6% dos votos válidos em 2024, Kayo Amado parecia ter consolidado uma hegemonia inédita na política vicentina. O número foi celebrado como um sinal inequívoco de aprovação popular. Mas a realidade de seus primeiros 100 dias de mandato expõe uma distância crescente entre o capital político acumulado nas urnas e a legitimidade percebida nas ruas.

Salas de aula sem manutenção, greve e caos urbano

Logo no início do segundo mandato, a gestão enfrentou uma sequência de problemas:

-Escolas municipais ficaram sem manutenção de ventiladores e bebedouros em pleno verão, obrigando alunos e professores a suportar temperaturas extremas nos meses de fevereiro e março.

-Houve greve de professores, motivada não apenas por questões salariais e ambiente tóxico, mas também pela falta de estrutura básica e insumos como internet, materiais e uniformes escolares.

-Na saúde pública, a escassez de médicos e remédios, o atraso nos pagamentos e a superlotação nos postos e prontos-socorros se tornaram recorrentes.

-Servidores da assistência social denunciaram publicamente a precarização das condições de trabalho e o colapso no atendimento à população em situação de rua e crianças e adolescentes em vulnerabilidade.

-Cracolândias se multiplicaram em bairros periféricos como Sambaiatuba, Jóquei, Vila Margarida e Quarentenário, sem ação integrada visível da prefeitura.

-A cidade convive com acúmulo de lixo e entulho em diversos bairros, reforçando a sensação de abandono.

Esses episódios não apenas desgastam a imagem de eficiência administrativa associada à primeira gestão, como também colocam em xeque a capacidade de resposta do governo em áreas sensíveis.

Aumento de salários, explosão do IPTU e tarifa mais cara no ônibus

Em meio à crise dos serviços públicos, o prefeito e sua base aprovaram um aumento expressivo de salário para o próprio cargo e para comissionados, gesto amplamente interpretado como insensível frente à realidade da população e dos servidores.

Simultaneamente, o reajuste do IPTU impactou profundamente famílias de baixa e média renda. Em diversos imóveis, o aumento chegou a 100%, penalizando especialmente bairros com pouco retorno em investimento público. E, num movimento visto como covarde por muitos aposentados, o governo chegou a propor o fim da isenção do IPTU para pessoas idosas, atacando diretamente quem já contribuiu a vida inteira com a cidade.

Como se não bastasse, a tarifa de ônibus aumentou R$ 1, mesmo com o transporte público municipal visivelmente sucateado — com veículos antigos, poucos horários e falta de integração. Medidas que, no conjunto, revelam uma política fiscal regressiva, que cobra mais de quem tem menos e entrega menos a quem depende mais.

Eleição consagradora? Nem tanto

Apesar da vitória esmagadora nas urnas, uma análise técnica revela nuances importantes:

-Votos válidos para Kayo: 87,6%;

-Sobre o total do eleitorado da cidade: 56,6%;

-Abstenção: 27,9%;

-Brancos e nulos: 7,4%;

-Votos em adversários: 8%.

Ou seja, 43,4% do eleitorado apto não referendou sua candidatura — por abstenção, rejeição ou desinteresse. A narrativa de unanimidade esconde uma desmobilização política estrutural.

Avaliação do governo: aprovação formal, aprovação real

Segundo o Instituto Badra, 64,5% aprovam a forma de governar dos 100 primeiros dias do segundo mandato de Kayo Amado. Mas, ao analisar a avaliação conceitual do governo:

-Ótimo e bom: 39,7%

-Regular: 34,8%

-Ruim e péssimo: 23,8%

-Não opinaram: 1,8%

Apenas 4 em cada 10 cidadãos avaliam positivamente o governo. A maioria o vê como “regular” ou negativo — sinal de tolerância cética, não de entusiasmo. A insatisfação latente de hoje pode não ser simples sinal de rejeição, mas sim percepção e frustração com a distância entre promessa e entrega.

A base que hoje o tolera, mas não o apoia com entusiasmo, pode ser composta por eleitores pragmáticos, esperando resultados concretos. Há ainda os desmobilizados que desistiram de votar — não por alienação, mas por descrença em qualquer mudança real.

Do técnico ao clientelismo: a rigidez silenciosa da gestão Kayo

A greve dos professores revelou a face mais autoritária da atual gestão. A postura de fechamento ao diálogo e decisões unilaterais expôs um perfil político até então disfarçado por uma estética de modernidade: calculista, inflexível e distante das bases.

Paralelamente, o prefeito ampliou sua base de apoio via acomodações políticas. Hoje, 28 secretarias compõem a estrutura — recorde histórico local — muitas utilizadas como moeda de troca para sustentar apoio na Câmara. Entre os contemplados estão nomes como os deputados estaduais Caio França e Solange Freitas, e também três vereadores eleitos que, ao assumirem secretarias, esvaziaram o papel fiscalizador do Legislativo.

A promessa de uma gestão técnica, enxuta e comprometida com o servidor público foi substituída por uma lógica patrimonialista¹. O que se consolidou foi um modelo híbrido de tecnocracia e clientelismo², que promete eficiência, mas entrega gestão fragmentada, inchaço da máquina pública, ineficiência dos gastos públicos e falta de transparência.

Da oposição à velha política: o retorno ao poder tradicional

Nos bastidores, fala-se abertamente que Kayo Amado prepara sua transição para a política nacional, mirando uma candidatura a deputado federal, em dobradinha com Caio França a deputado estadual. Uma composição impensável oito anos atrás, quando Amado se apresentava como antítese do coronelismo dos França. Agora, a possível aproximação eleitoral escancara o pragmatismo das alianças partidárias e marca o retorno simbólico das antigas estruturas sob nova roupagem.

A fragilidade da oposição: o silêncio que também governa

Por outro lado, a oposição local mostrou-se inexpressiva e programaticamente desidratada. A votação irrisória dos adversários em 2024 revela mais do que o favoritismo de Amado: expõe a incapacidade dos partidos e lideranças em apresentar projetos viáveis, lideranças novas e alternativas concretas.

Sem força institucional e com parte da oposição cooptada por cargos no Executivo, o campo crítico se retraiu, deixando o eleitor órfão de representação efetiva.

Conclusão: onde há risco de crise, há espaço político

A combinação de uma possível crise material, contradições simbólicas e fadiga administrativa pode produzir a oportunidade para uma oposição qualificada. Não uma oposição reacionária ou antipolítica, mas uma que compreenda:

-Que a hegemonia eleitoral não é sinônimo de hegemonia social;

-Que há um eleitorado órfão — 43% — que não se viu representado em 2024;

-E os 34,8% que avaliam o governo como “regular” formam um campo volátil e decisivo.

Em um cenário de fraturas silenciosas, o verdadeiro desafio para 2028 não é vencer uma eleição — é resgatar o sentido da política. O eleitor vicentino observa, começa a cobrar e, se encontrar alternativa coerente, pode virar a chave. Parece improvável, mas não é impossível.

¹ Patrimonialismo é um conceito da sociologia política (Weber) que descreve quando agentes públicos tratam o Estado como uma extensão de seus interesses privados — usando cargos, estruturas e recursos públicos como se fossem de sua propriedade pessoal ou política.

² Clientelismo é a prática de trocar favores, cargos ou benefícios por apoio político, criando relações de dependência entre governantes e aliados. Em vez de mérito ou transparência, prevalece a lealdade pessoal como critério de nomeação e governabilidade.

Dados eleitorais obtidos no site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nos links de estatísticas eleitorais e de resultados das eleições.

*Danilo Tavares (@danilotavaressol) é produtor cultural, funcionário público municipal e secretário de comunicação do PSOL de São Vicente, além de membro do Conselho de Economia Solidária de São Vicente e do Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista e diretor da Casa Crescer e Brilhar.

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.