Baixar Notícia
WhatsApp

Voçorocas de Buriticupu: Há 30 anos, famílias lutam por justiça e direito a moradias dignas e seguras

Acessar notícia original

Data: 24/04/2025 13:01:01

Fonte: g1.globo.com

Foto: Arte g1 / Bianca Batista, Dhara Assis e Bruna Azevedo

Com pouco mais de 55 mil moradores, a cidade de Buriticupu, no Maranhão, possui belas paisagens e uma cultura rica, mas, nos últimos anos, virou destaque internacional pelo crescimento de pelo menos 26 precipícios que, aos poucos, estão destruindo casas, desabrigando famílias e já provocaram mortes.

Os grandes buracos, também chamados de ‘voçorocas’, nasceram por uma soma de fatores que incluem o terreno frágil, a grande altitude, e o histórico de falta de infraestrutura e planejamento urbano, segundo moradores e especialistas. Em 2025, a prefeitura decretou estado de calamidade pública.

💡 Contexto: Buriticupu fica no topo de uma região com cerca de 200 metros de altitude, cercada de vales. O solo da região tem presença predominante de areia, silte e argila, com pouca porosidade. Com o avanço do desmatamento, o solo fica ainda mais suscetível ao surgimento das voçorocas. Cerca de 70 casas já foram engolidas pelos buracos e, sem obras de contenção, alguns chegam a 600 metros de extensão e 80 de profundidade. A cidade recebe o nome do principal rio que a atravessa: o Rio Buriticupu. Segundo moradores antigos, os indígenas Guajajara batizaram o manancial devido à abundância de buriti no leito e cupuaçu nas margens. Ou seja, uma junção dos dois nomes.

Segundo os moradores, o problema das voçorocas já dura mais de 30 anos, Nesse período, foram as cobranças dos buriticupuenses, somadas às ações das instituições de Justiça – como a Defensoria Pública do Maranhão o Ministério Público – que conseguiram minimizar os impactos às famílias que tiveram que sair de casa ou perderam entes queridos.

30 anos das voçorocas que engolem casas em Buriticupu

O g1 foi até Buriticupu e nessa reportagem você confere as histórias de sete das 26 voçorocas que ameaçam a cidade maranhense, assim como a reação dos moradores e de instituições de justiça para tentar conter o avanço das crateras.

Foto: Arte g1 / Bianca Batista, Dhara Assis e Bruna Azevedo

Em Buriticupu, a maioria dos que ainda residem na cidade já perdeu as esperanças de solução para as crateras e ainda vivem o dilema de não ter outro lugar para morar. A dona de casa Maria Antônia é um exemplo. Ela perdeu o filho, arrastado para dentro de uma voçoroca que fica próxima do local onde mora, mas não consegue sair da cidade.

Maria faz referência à voçoroca na Rua João Moreira, no bairro Terra Bela, que ficou famosa na cidade devido a morte de Márcio Costa Araújo, em outubro de 2022. Ele pilotava uma moto e estava com a esposa, a caminho da casa da mãe, quando se deparou com uma enxurrada após um dia chuvoso.

Boca da voçoroca onde Márcio Araújo caiu, em 2022. — Foto: Rafael Cardoso/g1 MA

Márcio tentou atravessar com a moto, mas a água o derrubou. A esposa pulou e conseguiu se salvar, mas a água arrastou o homem até a voçoroca, que fica colada na rua.

Maria Antônia conta sobre a perda do filho, Márcio, por causa de uma das voçorocas

Após várias buscas, o corpo de Márcio foi encontrado a cerca de 800 metros da boca da voçoroca, que era usada para escoamento de água da chuva, mas não tinha sinalização.

Foto: Arte g1 / Bianca Batista, Dhara Assis e Bruna Azevedo

No Residencial Eco Buriticupu, com centenas de casas construídas, o valor dos imóveis já caiu mais de 50% e ainda assim não há quem aceite comprar. O motivo é o crescimento de uma enorme voçoroca e outras menores que estão se formando ao redor do bairro.

As casas estão ameaçadas e muitas já foram abandonadas porque estão à beira de abismos. Em toda Buriticupu, nos últimos 10 anos, as crateras engoliram cerca de 70 residências, tanto no Residencial Eco, como também em outras regiões.

Estudante Kailanny Pinheiro fala sobre o medo de morar perto de uma voçoroca

No dia 7 de março deste ano, uma jovem identificada por moradores e amigos como Maisa Sousa caiu na mesma voçoroca do Residencial Eco Buriticupu citada por Kailany. A vítima foi resgatada com vida.

Um vídeo (veja abaixo) mostra a vítima se mexendo, mas com dificuldade para se levantar. Bombeiros civis foram chamados para realizar o resgate, mas, inicialmente, encontraram dificuldades para se aproximar do local, como sempre acontece com acidentes nas voçorocas.

Jovem cai em voçoroca de 80 metros de profundidade em Buriticupu, no Maranhão

Geograficamente, Buriticupu fica no topo de uma região com cerca de 200 metros de altitude, cercada de vales, e com um solo de pouca porosidade, segundo estudos realizados pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) na região.

Além dessas características, os moradores afirmam que o problema também está ligado ao mau planejamento da cidade na década de 1980, quando a região foi ocupada e Buriticupu foi fundado. Na época, de forma irregular, ocorreram extrações de pedras e madeira – o que até hoje contribuem para o avanço das crateras (entenda na ilustração abaixo).

Desmatamento causou crateras que ameaçam ‘engolir’ casas no MA — Foto: Kayan Albertin/g1

Chuva causa enxurrada em voçoroca em Buriticupu, no Maranhão

Na área urbana, sem canalização adequada, quando chove, a água vai abrindo caminhos por onde passa e terminam caindo nas próprias voçorocas (veja no vídeo acima).

“Tem uma cidade que não tem saneamento básico, tem uma cidade que tem ruas direcionadas para encosta, então canaliza toda a água para lá. Tem o esgoto que cai nesses lugares, vai intensificando, tem uma população que é vulnerável, mas que não quer sair porque não tem ainda uma sensibilidade, nem tem para onde ir”, disse Marcelino Farias, professor da UFMA, doutor em ciência do solo e pesquisador das voçorocas.

Foto: Arte g1 / Bianca Batista, Dhara Assis e Bruna Azevedo

A voçoroca próxima à Rua da Alegria, com a Rua da Liberdade, é a maior da cidade, com 80 metros de largura. Ela é composta por outros três precipícios menores, e deve continuar aumentando, segundo as previsões dos moradores.

O problema das voçorocas na cidade perdura há pelo menos 30 anos, mas o precipício mais antigo, da Rua da Cafeteira, começou se formar há 48 anos, quando ainda era uma gruta, e se transformou numa voçoroca no decorrer das décadas.

Foto: Arte g1 / Bianca Batista, Dhara Assis e Bruna Azevedo

“Ela teve início nos anos de 1976, com o início da colonização da cidade, portanto são 48 anos. Era uma gruta que foi crescendo. A extração de madeira e também de pedras fez com que o terreno ficasse totalmente desprotegido”, explicou o professor e presidente da Associação de Moradores das Áreas Atingidas pelas Erosões de Buriticupu, Isaías Neres.

Voçoroca mais antiga de Buriticupu, no interior do Maranhão — Foto: JN

De acordo com os buriticupuenses, nas três décadas em que as crateras avançam na cidade, não houve obras de contenção adequadas e com força para conter o avanço das crateras.

Na Zona Rural de Buriticupu, uma das voçorocas, por exemplo, ameaça cortar completamente a única via que leva aos povoados Acampamento e Centro do Meio, onde moram cerca de 200 famílias. A população da região só possui a Estrada do Acampamento como via até a área urbana, mas quase toda a estrada está à beira do abismo, que se formou nos últimos anos.

Foto: Arte g1 / Bianca Batista, Dhara Assis e Bruna Azevedo

Em 2024, após ações na Justiça e as reportagens mostrando o problema das voçorocas, a Prefeitura de Buriticupu começou uma obra de contenção na estrada, no mês de maio – a única em 30 anos.

Na obra, tratores colocaram terra na beira da estrada para cobrir os buracos. Moradores e especialistas, no entanto, já apontavam que o serviço não teria resultado a longo prazo, com o retorno do período chuvoso.

Em 2025, com as fortes chuvas que caíram em Buriticupu, parte da voçoroca da Estrada do Acampamento sofreu erosão e o medo dos moradores persiste.

No dia 9 de maio de 2023, uma casa foi ‘engolida’ por uma das crateras, após um deslizamento de terra ocorrido em uma rua do bairro Vila Isaías. Segundo o Corpo de Bombeiros, a residência já havia sido evacuada e não houve vítimas.

Uma semana antes, o policial militar aposentado José Ribamar Silveira caiu dentro de uma das crateras enquanto manobrava uma caminhonete. A queda foi de uma altura de, aproximadamente, 80 metros.

Foto: Arte g1 / Bianca Batista, Dhara Assis e Bruna Azevedo

José Ribamar foi encaminhado para uma Unidade de Pronto-Atendimento, na época. A vítima teve um braço quebrado e uma fratura exposta no pé esquerdo. Ele foi transferido para um hospital de São Luís e passou vários dias internado, mas sobreviveu.

Policial aposentado José Ribamar caiu em voçoroca de 80 metros em Buriticupu

Policial aposentado, José Ribamar caiu em uma voçoroca e mostra marca de uma fratura exposta decorrente do acidente — Foto: Rafael Cardoso/g1 MA

A mesma voçoroca onde o PM caiu é o buraco que chamou a atenção do mundo, em 2023. Nas imagens aéreas, gravadas por um morador, o tamanho das crateras impressionou e viralizou nas redes sociais.

Em 2024, no dia 19 de março, 36 pessoas foram resgatadas na região Buriticupu, e também Santa Luzia, com a ajuda de helicópteros do Centro Tático Aéreo (CTA). Ao menos cinco vilas, nos dois municípios, que ficam localizadas em uma área de vale, foram atingidas por lama de deslizamentos.

O professor Fernando Bezerra, do programa de pós-graduação em Geografia, Natureza e Dinâmica do Espaço, da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), explica que o surgimento de novas crateras podem ser prevenidas para evitar tragédias de maiores proporções.

“É necessário investir na proteção do solo com a cobertura vegetação próxima, especialmente em locais de alta declividade, além de evitar queimadas”, explica.

Na Rua Dr. Medeiros, uma das voçorocas mais famosas da cidade está entre um trio que facilmente é visto nas imagens de satélite. O local fica colado a uma rua bastante movimentada, e apenas alguns arames tentam indicar que ali existe um abismo.

Foto: Arte g1 / Bianca Batista, Dhara Assis e Bruna Azevedo

De acordo com o departamento de Geociência da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), a universidade alertou as autoridades, por meio da publicação de artigos em revistas, sobre o problema das voçorocas. Para o professor Marcelino Silva, faltou planejamento no modelo de urbanização e ação para combater o avanço das crateras.

Marcelino também reforça que é preciso evitar queimadas e desmatamento em áreas próximas, devido a instabilidade do solo. Para uma maior eficácia, conforme o professor, são necessários investimentos em infraestrutura com esgotamento sanitário, drenagem urbana e a retirada da população de perto das crateras.

Na Justiça, há pelo menos duas ações contra o Município de Buriticupu, impetradas pelo Ministério Público do Maranhão (MP/MA) e a Defensoria Pública do Estado (DPE/MA), que buscam realocar as famílias que moram em áreas de risco, por meio da construção de moradias dignas em regiões seguras, ou por meio de aluguel social.

Em 2022, a Prefeitura de Buriticupu se comprometeu a realizar obras para solucionar os problemas da voçorocas, além de delimitar, isolar e sinalizar as áreas de risco. Houve ainda o acordo para interditar imóveis, remover as pessoas, cadastrar as famílias afetadas pela erosão, além de custear o aluguel social e apresentar levantamento das áreas afetadas.

“Em relação ao processo judicial, houve uma decisão cautelar determinando a adoção de medidas urgentes, como a sinalização, isolamento das áreas de risco, interdição e remoção de pessoas das zonas afetadas. Algumas dessas medidas foram, de fato, implementadas, mas em alguns casos ocorreram questionamentos por parte dos moradores. Essas questões, particularmente, estão sendo tratadas em uma ação mais antiga movida pela Defensoria Pública, que aborda essas preocupações específicas”, aponta o promotor da 1ª Promotoria de Justiça de Buriticupu, Felipe Augusto Rotondo.

“No processo em que atuo, que tramita na 1ª Vara de Buriticupu, o município apresentou contestação, alegando ter cumprido as medidas urgentes determinadas. No entanto, após análise pelo Ministério Público, constatou-se que nem todas as obrigações foram plenamente atendidas”, conclui o promotor.

Em 2023, a Defensoria Pública, por meio do Núcleo de Moradia e Defesa Fundiária, esteve em Buriticupu e realizou uma inspeção nas áreas de risco pelas voçorocas, após relatos dos próprios moradores.

Na época, foi constatada insegurança nos locais e a presença de crianças convivendo em espaços sem qualquer tipo de isolamento. O defensor Erick Railson constatou que o Município realizou o cadastramento dos moradores e a Defesa Civil Municipal realizou a medição dos imóveis, mas muitas pessoas denunciaram as dificuldades para encontrar outro imóvel para moradia provisória.

Inspeção das voçorocas e da situação dos moradores realizada pela Defensoria Pública do Maranhão, em Buriticupu — Foto: Divulgação/Defensoria Pública do Estado

Após a inspeção, algumas sinalizações foram colocadas próximas de algumas voçorocas e houve o processo de realocação de famílias, com o pagamento de aluguel social. Atualmente, segundo a defensora pública em Buriticupu, Ana Franciele, muitas famílias já foram realocadas para residências em áreas mais seguras.

“A Defensoria Pública ajuizou Ação Civil Pública visando à proteção de famílias. No curso da demanda, foi determinada judicialmente uma série de providências a serem adotadas pelo Município, com destaque para a sinalização das áreas afetadas e a remoção das famílias que se encontram em situação de risco. No decorrer deste ano, diante do agravamento dos danos causados pelas voçorocas, a Defensoria também requereu a sinalização adequada e a contenção emergencial das novas áreas atingidas, buscando resguardar a integridade física e patrimonial das comunidades vulnerabilizadas”, declarou a defensora.

Até 2024, 180 famílias estavam em situação de risco e, em 2025, mais famílias tiveram que deixar as residências próximas de onde as voçorocas já alcançaram. Ao g1, o morador e estudante, Ailton Silva, contou que precisou deixar a casa onde vivia com a família, na Rua Vitória, por causa do avanço de uma voçoroca.

Casa é ‘engolida’ por voçoroca e assusta moradores em Buriticupu

Ailton foi tirado de onde morava porque uma das residências na Rua Vitória foi engolida por uma voçoroca, o que provocou desespero nos vizinhos (veja no vídeo acima). Uma casa, que já tinha sido abandonada, foi levada para o abismo e as demais residências ao redor precisaram ser evacuadas.

“Sempre que provocada por famílias atingidas, a Defensoria Pública tem apresentado requerimentos para que o Município seja compelido a garantir o direito à moradia digna, por meio da concessão do aluguel social às pessoas desalojadas em decorrência do avanço da erosão”, reforçou a defensora Ana Franciele, orientando os moradores a procurarem seus direitos.

Atualmente, alguns moradores, como o Ailton, reclamam da falta de pagamento do aluguel social, por parte da Prefeitura de Buriticupu, aos proprietários dos imóveis onde eles foram realocados. Por causa disso, as famílias têm medo de serem despejados.

“Em todos esses casos, a orientação é procurar a Defensoria. Já existe um protocolo de atuação, em que primeiro fazemos o atendimento, depois oficiamos o Município e, por fim, persistindo o descumprimento, peticionamos na Ação Civil Pública”, conclui a defensora Ana.

Casa engolida’ por voçoroca em Buriticupu — Foto: Divulgação/Corpo de Bombeiros

Em março de 2023, a Defesa Civil Nacional esteve em Buriticupu avaliando a situação. Na época, foi decretado estado de calamidade pública. O Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional se comprometeu em ajudar a resolver o problema.

Em nota, o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR) disse que foi publicado o convênio para ações de recuperação em Buriticupu, no valor de R$ 11.220.347,48, dos quais a primeira parcela, no valor de R$ 3.366.104,24, já foi repassada para a reconstrução de 89 Unidades Habitacionais no município, em razão das voçorocas. O processo, porém, ainda estaria em fase de execução.

Já a Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sedec) disse que, em março de 2023, houve o repasse de R$ 687 mil para aquisição de materiais de assistência humanitária para as famílias desabrigadas, desalojadas e afetadas pelo avanço erosivo das voçorocas.

“Nos dias 08, 09 e 10 de maio de 2023, foi realizada visita técnica em Buriticupu para orientar os gestores do município sobre as ações necessárias. Em razão disso, o município apresentou à Secretaria um Plano de Trabalho para recuperação de vias e estabilização de processos erosivos, dividido em duas metas: a) estudos e projetos da obra e b) obras emergenciais de drenagem. O valor solicitado foi de R$ 40.888.460,25. Atualmente, o processo encontra-se na área técnica em fase final de avaliação”, diz a nota.

Trio de voçorocas localizadas uma ao lado da outra, em Buriticupu. Ao centro, a voçoroca da Rua Dr. Medeiros. — Foto: Reprodução/Marinho Drones

Por fim, a Defesa Civil Nacional do MIDR afirmou que está debatendo uma estratégia de gestão do desastre juntamente com o município desde a visita em campo.

Por outro lado, de acordo com João Carlos Teixeira (PP), prefeito da cidade, o Governo Federal apenas liberou recursos para as obras de habitação – 89 casas populares, segundo a prefeitura – que, segundo ele, estão em andamento. O gestor diz ainda que o município aguarda os recursos federais que serão utilizados para obras de prevenção.

“De acordo com a liberação de recursos do ministério, as obras estão em andamento relacionadas a habitações. Quanto a obras de emergência, de prevenção para possíveis desastres, eu quero esclarecer que não foi liberado nada relacionado a essas obras de intervenção. Todos os projetos que devem ser apresentados pelo Município à Defesa Nacional sobre essa pauta já foram apresentados e aguardamos liberação da ordem de serviço para que a gente possa iniciar”, declarou o prefeito.